Выбрать главу

Só pude ver o rosto de um dos leprosos: aquele que teve a coragem de suportar que eu o olhasse.

– Onde está o cara?

Na porta, uma sombra de um homenzinho do tamanho de um anão:

– Toussaint e os outros querem vê-lo. Leve-o para o centro. Jean Sans Peur levanta e me diz: “Siga-me”. Saímos todos na noite, quatro ou cinco na frente, eu ao lado de Jean Sans Peur, outros atrás. Quando chegamos, depois de três minutos, em cima de uma esplanada, um pouco de lua ilumina o lugar. É o topo plano da ilha. No meio, uma casa. Sai luz de duas janelas. Na frente da porta, uns vinte homens esperam a gente, vamos na direção deles. Quando chegamos diante da porta, eles se afastam para dar passagem. É uma sala retangular de 10 metros de comprimento por aproximadamente 4 de largura, com uma espécie de fogão onde queima lenha, cercado por quatro enormes pedras, todas da mesma altura. A sala está iluminada por dois grandes lampiões a petróleo. Sentado num banquinho, um homem sem idade, branco de rosto. Atrás dele, num banco, cinco ou seis homens. Ele tem olhos negros e me diz:

– Sou Toussaint, o corso, e você deve ser Papillon.

– Sou.

– As notícias correm rapidamente na colônia, tão rapidamente quanto você. Onde você botou o fuzil?

– Jogamos no rio.

– Em que lugar?

– Em frente ao muro do hospital, exatamente onde pulamos.

– Então, será que pode ser recuperado?

– Acho que sim, porque a água não é funda naquele lugar.

– Como é que você sabe?

– Tivemos que entrar na água para carregar meu amigo ferido e colocá-lo dentro da canoa.

– O que ele tem?

– Uma perna quebrada.

– O que você fez com ele?

– Coloquei em volta da perna uns galhos quebrados pela metade e fiz uma espécie de tala.

– Ele está sentindo dor?

– Está.

– Onde ficou?

– Na canoa.

– Você disse que veio procurar ajuda. Que tipo de ajuda?

– Um barco.

– Você quer que a gente dê um barco para você?

– Quero, tenho dinheiro para pagar.

– Bom. Vou-lhe vender o meu, é formidável e novo em folha, roubei na semana passada, em Albina. Não é um barco, é um transatlântico. Só falta uma coisa, uma quilha. Não está quilhado, mas, em duas horas, a gente vai colocar uma boa quilha. Tem tudo que precisa: um leme com a cana completa, um mastro de 4 metros de madeira de lei e uma vela novinha de tela de linho. Quanto é que você oferece?

– Diga seu preço, eu não sei quanto valem essas coisas.

– Três mil francos, se você puder pagar; se não puder, vá buscar o fuzil amanhã à noite e, em troca, eu dou o barco.

– Não, eu prefiro pagar.

– Está certo, negócio feito. La Puce, dá café.

La Puce, o quase anão que me foi buscar, vai até uma prateleira presa na parede em cima do fogo, pega uma tigela brilhante de nova e de limpeza, despeja nela o café de uma garrafa e a coloca no fogo. Um minuto depois retira a tigela e despeja um pouco de café numas canecas, que estão perto das pedras. Toussaint se debruça e passa as canecas para os homens atrás dele. La Puce estende a tigela para mim e diz:

– Beba sem medo, porque esta tigela é só para as visitas. Nenhum doente bebe nela.

Pego a tigela e bebo; depois coloco-a em cima do joelho. Nesse momento, percebo que colado na tigela tem um dedo. Enquanto o observo, La Puce diz:

– Olhe, perdi outro dedo! Onde será que caiu?

– Está aí – digo, mostrando para ele a tigela. Ele desgruda O dedo e joga-o no fogo; devolve a tigela e diz:

– Pode beber, eu tenho a lepra seca. Vou acabando aos pedaços, mas não apodreço, não sou contagioso.

Um cheiro de carne grelhada chega até mim. Raciocino comigo mesmo: “Isso deve ser aquele dedo”. Toussaint diz:

– Vai ter que passar o dia todo aqui, até a noite, quando vier a vazante. Você precisa avisar seus amigos. Traga o ferido para dentro de uma palhoça, tirem tudo o que tiver dentro da canoa e deixe que vá. Nenhum de nós pode ajudá-los, você compreende por quê.

Rapidamente vou até os outros dois, pegamos Clousiot e depois o levamos até uma palhoça. Uma hora depois, já tiramos tudo e o material da canoa está cuidadosamente arrumado. La Puce pede que lhe dê de presente a canoa com um remo. Dou e ele vai levá-la até um lugar que conhece. A noite passou depressa. Estamos os três dentro da palhoça, deitados em cima de cobertas novas que Toussaint mandou. Chegaram embrulhadas num papel forte de embalagem. Esticado em cima dessas cobertas, conto a Clousiot e a Maturette os detalhes daquilo que se passou depois da minha chegada na ilha e do negócio concluído com Toussaint. Clousiot fala uma coisa besta, sem refletir:

– A fuga custa então 6 500 francos. Vou dar a metade, Papillon, isto é, os 3 000 francos que tenho.

– Não estamos aqui para fazer contas de mascate. Enquanto tiver dinheiro, eu pago. Depois, a gente vê.

Nenhum leproso entra na palhoça. Amanhece, Toussaint chega:

– Bom dia. Podem sair sossegados. Aqui, ninguém vem incomodar. Em cima de um coqueiro, no alto da ilha, tem um sujeito para ver se há embarcações de guardas no rio. Não se vê nada. Enquanto o trapo branco ficar agitando é porque não tem nada à vista. Se ele vê alguma coisa, desce para dizer. Podem pegar uns mamões e comer, se quiserem.

– Toussaint, e a quilha? – digo eu.

– Vamos fazer a quilha com uma tábua da porta da enfermaria. É madeira pesada. Com duas tábuas, podemos fazer a quilha. Já carregamos o barco até o alto, aproveitando a noite. Venha ver.

Vamos. É um barco magnífico de 5 metros de comprimento, novo em folha, dois assentos, um deles furado para deixar passar o mastro. É pesado e eu e Maturette custamos para virá-lo. A vela e as cordas são novas. Do lado, estão pregados umas argolas, para amarrar a carga e o tonel da água. Começamos a trabalhar. Ao meio-dia, uma quilha, que se vai alinhando da parte traseira até a frente, é solidamente fixada com porcas largas e os quatro parafusos que eu tinha.

Em círculo, à volta da gente, os leprosos nos olham trabalhar sem dizer uma palavra. Toussaint diz como se deve fazer e nós obedecemos. Nenhuma chaga existe no rosto de Toussaint, que parece normal; mas, quando ele fala, percebe-se que só um lado do rosto se mexe, o esquerdo. Ele me falou que também sofre de lepra seca. Seu peito e seu braço direito estão igualmente paralisados e ele sabe que daqui a pouco a perna direita vai ficar paralisada. O olho direito é fixo como um olho de vidro, enxerga mas não se mexe. Não dou aqui o nome de nenhum dos leprosos. Talvez nunca aqueles que os amaram ou conheceram cheguem a saber de que maneira horrível eles ficaram se decompondo ainda vivos.

Sempre trabalhando, converso com Toussaint. Ninguém mais fala. Só uma vez, quando ia buscar algumas dobradiças que eles tinham arrancado de um móvel da enfermaria para reforçar o assentamento da quilha, um deles disse:

– Não pegue nelas ainda, deixe onde estão. Eu me cortei arrancando uma e tem sangue; o sangue ficou, por mais que eu tenha enxugado.

Um leproso derramou um pouco de rum em cima e botou fogo duas vezes.

– Agora – disse o homem -, você pode usá-las.

Enquanto trabalhamos, Toussaint diz a um leproso:

– Você, que fugiu muitas vezes, explique bem a Papillon como é que precisa fazer, porque nenhum dos três tem experiência.

Imediatamente ele explica:

– Daqui a pouquinho vai anoitecer e virá o refluxo. A maré vazante começa às 3 horas. Assim que escurecer, lá pelas 6 horas, você tem pela frente uma correnteza muito forte que vai levar você em menos de três horas a uns 100 quilômetros da embocadura. Quando você tiver que parar, serão 9 horas. Vai ter que esperar, bem amarrado a uma árvore da floresta, as seis horas da montante, até as 3 da manhã. Não saia a essa hora, porque a correnteza não cessa logo. Siga pelo meio do rio, às 4 e meia da manhã. Você tem uma hora e meia antes do amanhecer para fazer 50 quilômetros. Essa hora e meia é toda a chance que você tem. Às 6 horas, ao amanhecer, você precisa entrar no mar. Mesmo que os guardas vejam você, não podem persegui-lo, porque chegariam na barra da embocadura justo quando começa a montante. Eles não vão poder passar e você já terá passado a barra. Desse quilômetro de vantagem que você precisará ter quando eles o enxergarem é que vai depender sua vida. Aqui só há uma vela, o que é que você tinha na canoa?