– Uma vela e um cutelo.
– Este barco é pesado, pode agüentar dois cutelos: um a traquete, da ponta do barco à parte de baixo do mastro; o outro enfunado, saindo para fora da ponta da embarcação, para poder levantar bem a proa. Solte todas as velas, direto em cima das ondas do mar, que está sempre agitado no estuário. Mande seus amigos se deitarem no fundo do barco, para dar maior estabilidade, e segure firme o leme na mão. Não amarre a corda que segura a vela na sua perna, enfie-a na argola que existe para isso dentro do barco e prenda-a no seu pulso com uma volta só. Quando notar que a torça do vento está formando um vagalhão e você poderá cair na água, com risco de virar, solte tudo e imediatamente verá que seu barco vai readquirir equilíbrio. Se acontecer isso, não pare, deixe a vela esvoaçar e vá sempre para a frente a todo pano, com o traquete e o cutelo. Só em alto-mar você vai ter tempo de descer a vela pelo pequeno, trazê-la a bordo e partir de novo, depois de tornar a colocá-la. Você conhece a rota?
– Não. Sei somente que a Venezuela e a Colômbia ficam a noroeste.
– É isso, mas cuidado para não se deixar atirar na costa. A Guiana Holandesa, em frente, devolve os fugitivos; a Guiana Inglesa também. Trinidad não devolve, mas obriga-os a ir embora depois de quinze dias. A Venezuela devolve, depois de obrigar a gente a trabalhar nas estradas por um ano ou dois.
Escuto com os ouvidos bem atentos. Ele diz que foge de tempos em tempos, mas, como é leproso, é mandado de volta imediatamente. Confessa que nunca foi mais longe do que a Guiana Inglesa, Georgetown. Só tem lepra visível nos pés, onde todos os dedos desapareceram. Está descalço. Toussaint pede para eu repetir todos os conselhos que acabaram de me dar e eu repito sem me enganar. Nessa hora, Jean Sans Peur diz:
– Quanto tempo ele vai levar em alto-mar?
Respondo logo, antes de qualquer outra pessoa:
– Vou fazer três dias nor-nordeste. Com a deriva, norte-norte e no quarto dia vou tocar para noroeste, que vai dar oeste pleno.
– Ótimo – diz o leproso. – Eu, a última vez, só fiz dois dias para nordeste; assim, fui cair na Guiana Inglesa. Com três dias para norte, você vai passar ao norte de Trinidad ou de Barbados, e de uma vez só você passará a Venezuela sem perceber; vai dar em cima de Curaçau ou na Colômbia.
Jean Sans Peur diz:
– Toussaint, por quanto você vendeu o barco?
– Três mil – diz Toussaint. – É caro?
– Não, não estou falando por causa disso. Para saber, só. Você pode pagar, Papillon?
– Posso.
– Vai sobrar algum dinheiro para vocês?
– Não, é tudo o que temos, exatamente 3 000, que são do meu amigo Clousiot.
– Toussaint, dou meu revólver para você – diz Jean Sans Peur.
– Vou ajudar esses caras. Por quanto você fica com o revólver?
– Mil francos – diz Toussaint. – Eu também quero ajudá-los.
– Obrigado por tudo – diz Maturette a- Jean Sans Peur.
– Obrigado – diz Clousiot.
Eu nessa hora fico com muita vergonha por ter mentido a eles e digo:
– Não, não posso aceitar isso de você, não há razão nenhuma.
Ele olha para mim e diz:
– Há, há uma razão. Três mil francos é muito dinheiro e, no entanto, por esse preço, Toussaint perde pelo menos 2 000 porque é um barco excelente que ele dá para vocês. Não há razão para que eu não faça alguma coisa também para vocês.
Acontece então uma coisa emocionante: Chouette coloca no chão um chapéu e os leprosos vão jogando dentro dele notas ou moedas. Aparecem leprosos de todas as partes e todos põem alguma coisa. Fico cheio de vergonha. E, no entanto, não posso dizer que ainda tenho dinheiro. Que fazer, meu Deus, é uma infâmia que estou cometendo contra tanta nobreza: “Por favor, não façam esse sacrifício!” Um negro do Sudão, completamente mutilado – tem dois cotos no lugar das mãos, e nem um dedo -, diz:
– O dinheiro não serve para a gente viver. Pode aceitar sem se envergonhar. O dinheiro só serve para a gente jogar ou trepar com as leprosas que vêm de vez em quando de Albina.
Estas palavras me consolam e me impedem de confessar que tenho mais dinheiro.
Os leprosos cozinharam duzentos ovos. Eles os trazem dentro de uma caixa marcada com uma cruz vermelha. É o caixote que receberam pela manhã, com os remédios do dia. Trazem também duas tartarugas vivas de pelo menos 30 quilos cada uma, fumo em folhas, duas garrafas cheias de fósforos e de lixas, um saco de pelo menos 50 quilos de arroz, dois sacos de carvão de lenha, um fogareiro, o da enfermaria, e um botijão de querosene. Toda essa miserável comunidade comove-se com nosso caso e querem todos contribuir para o nosso bom êxito. Parece que são eles que vão fugir. Puxamos a barca para perto do lugar onde chegamos. Contaram o dinheiro do chapéu: 810 francos. Tenho que dar só 1 200 francos a Toussaint. Clousiot me dá o seu canudo, eu o abro na frente de todo mundo. Contém uma nota de 1 000 e quatro notas de 500 francos. Dou a Toussaint 1 500 francos, ele me devolve 300 e depois diz:
– Tome, pegue o revólver, dou de presente. Você jogou tudo por tudo, não quero que na última hora falte uma arma, esta serve. Espero que você não vá precisar dela.
Não sei como agradecer, antes de tudo a ele e depois a todos os outros. O enfermeiro preparou uma caixinha com algodão, álcool, aspirina, ataduras, iodo, uma tesoura e esparadrapo. Um leproso traz umas ripas bem aplainadas e finas e duas ataduras Velpeau dentro de uma embalagem nova em folha. Ele as oferece, para que eu troque as ripas de Clousiot.
Lá pelas 5 horas começa a chover. Jean Sans Peur diz:
– Vocês têm todas as chances. Não há perigo de vocês serem vistos, podem partir imediatamente e ganhar uma boa meia hora. Assim, vocês vão estar mais perto da embocadura para sair às 4 e meia da manhã.
– Como é que vou saber a hora? – digo-lhe.
– A maré vai-lhe dizer quando sobe e quando desce.
Colocamos o barco na água. Não é como a canoa. Fica para cima da água mais de 40 centímetros, carregado com todo o material e nós três. O mastro, com a vela enrolada, está deitado porque só vamos colocá-lo na saída. Colocamos o leme com seu varão de segurança e a cana, mais uma almofada de cipós para eu sentar. Com as cobertas, arranjamos um canto no fundo do barco para Clousiot, que não quis trocar o curativo. Ele está junto aos meus pés, entre mim e o tonel de água. Maturette fica no fundo, mais para a frente. Tenho imediatamente uma impressão de segurança que nunca tive com a canoa.
Chove sempre, eu tenho que descer o rio pelo centro, mas um pouco à esquerda do lado da costa holandesa. Jean Sans Peur diz:
– Adeus, desapareçam logo!
– Boa sorte! – diz Toussaint e dá um empurrão no barco com o pé.
– Obrigado, Toussaint, obrigado, Jean, mil vezes obrigado a todos!
E nós desaparecemos logo, levados pelo refluxo que já começou há duas horas e meia, navegando com uma rapidez incrível.
Continua chovendo, não enxergamos 2 metros à nossa frente. Como há duas pequenas ilhas mais para baixo, Maturette se debruça para a frente, os olhos fixos adiante, para não irmos em cima das pedras. Anoiteceu. Uma árvore enorme que desce o rio conosco, felizmente mais lentamente, nos atrapalha um instante com seus galhos. Livramo-nos rapidamente e continuamos, a 30 por hora pelo menos. Fumamos, tomamos rum. Os leprosos nos deram seis garrafas de chianti com guarnição de palha, cheias de rum. Coisa gozada, nenhum de nós fala das feridas horrorosas que vimos nos leprosos. O único assunto da conversa: a bondade, a generosidade, a honestidade deles, nossa sorte de ter encontrado o bretão mascarado que nos conduziu até a Ilha dos Pombos. Chove cada vez mais forte, estou ensopado até a alma, mas as malhas de lã são tão boas, que, mesmo ensopadas, esquentam. Não estamos com frio. Só a mão que maneja o leme se endurece debaixo da chuva.