– Vou cozinhar um pouco de arroz – diz Maturette.
– Eu seguro o fogareiro – diz Clousiot – e você a panela.
O botijão de querosene está colocado bem na frente, para evitar a fumaça. O arroz feito na gordura tem um gosto muito bom. Comemos o arroz bem quente, misturado com duas latas de sardinhas. Em cima disso, um bom café. “Um gole de rum?” Eu recuso, faz muito calor. Além disso, não sou um bebedor. Clousiot, a cada instante, faz cigarros para mim e os acende. A primeira refeição a bordo foi bem. Pela posição do sol, imaginamos que são 10 da manhã. Temos apenas cinco horas de alto-mar, mas percebemos que aqui a água já é muito profunda. As ondas diminuíram de altura e vamos cortando-as sem o barco bater. O dia é maravilhoso. Percebo que durante o dia não preciso da bússola constantemente. De vez em quando, comparo a posição do sol em relação à da agulha e me guio por ele; é facílimo. A reverberação do sol cansa os olhos. Sinto não ter pensado em arranjar uns óculos escuros. De repente, Clousiot diz:
– Que sorte eu tive de encontrar você no hospital.
– Não é só você, eu também tive sorte em que você viesse. Pensa em Dega, em Fernández… se eles tivessem concordado, estariam aqui conosco.
– Quem sabe? – diz Clousiot. – Você poderia ter complicações para conseguir que o árabe viesse na hora exata à enfermaria.
– É, Maturette foi muito útil e eu me felicito por tê-lo trazido, porque ele é muito dedicado, corajoso e esperto.
– Obrigado – diz Maturette – e obrigado a vocês dois por terem confiança em mim, apesar da minha pouca idade e daquilo que eu sou. Vou fazer de tudo para estar sempre à altura.
Depois eu digo:
– E François Sierra, gostaria tanto que ele estivesse aqui, e também Galgani…
– Do jeito que as coisas mudaram, Papillon, não era possível. Se Jesus fosse um homem correto e tivesse arranjado um bom barco, a gente poderia esperar por eles num lugar certo. Jesus os ajudaria a fugir e nós os levaríamos. Enfim, eles conhecem você e sabem que, se você não mandou buscá-los, é porque era impossível.
– A propósito, Maturette, como é que você estava naquela enfermaria especial, no hospital?
– Eu não sabia que estava internado. Fui ao exame médico porque estava com dor de garganta e também para passear; e o médico, quando me viu, disse: “Vejo, pela sua ficha, que você está internado nas ilhas. Por quê?” – “Eu não sei, doutor. O que é ‘internado’?” – “Bom, nada. Vá para o hospital.” E eu me encontrei hospitalizado, só isso.
– Queria agradar você – diz Clousiot.
– Não sei por que motivo o doutor fez isso. Deve estar dizendo: “Meu protegido, com sua garganta de menino de coro, não era tão besta assim, pois conseguiu fugir”.
Falamos de bobagens. Digo: “Quem sabe, a gente vai-se encontrar de novo com Julot, o ‘homem do martelo’? Deve estar longe, a não ser que continue escondido na floresta”. Clousiot diz: “Eu, antes de sair, deixei um bilhete debaixo do meu travesseiro: Mudou-se sem deixar endereço”. Explodimos numa gargalhada.
Navegamos cinco dias sem problemas. De dia, o sol, com sua trajetória leste-oeste, me serve de bússola. De noite, uso a bússola. No sexto dia, de manhã, um sol brilhante nos saúda, o mar acalmou-se de repente, peixes-voadores passam não muito longe de nós. Estou arrebentado de cansaço. Durante a noite, para me impedir de dormir, Maturette passava no meu rosto um pano molhado de água do mar mas, mesmo assim, eu pegava no sono. Então Clousiot me queimava com seu cigarro. Como está tudo calmo, resolvo dormir. Baixamos a vela e o cutelo, conservamos somente o traquete e eu durmo como uma pedra no fundo do barco, bem protegido contra o sol pela vela que fica estendida por cima de mim. Acordo sacudido por Maturette, que diz:
– É meio-dia ou 1 hora, mas estou acordando você porque o vento está esfriando e no horizonte, do lado de onde vem o vento, ficou tudo preto.
Levanto-me e tomo meu lugar. O cutelo, o único que colocamos, nos faz deslizar sobre o mar sem rugas. Atrás de mim, a leste, está tudo preto, o vento vai esfriando cada vez mais. O traquete e o cutelo são suficientes para puxar o barco rapidamente. Fiz bem em deixar a vela enrolada no mastro.
– Segurem-se firmes, porque o que vem chegando aí é uma tempestade.
Gotas grandes começam a cair na gente. A escuridão se aproxima com uma rapidez vertiginosa, em menos de um quarto de hora veio do horizonte até bem perto de nós, Agora, um vento de violência nunca vista nos ataca. As ondas, como por encanto, se formam com rapidez incrível, todas cobertas de espuma; o sol está completamente aniquilado, chove torrencialmente, não se enxerga nada e as ondas, batendo contra o barco, lançam fortes jatos de água em nosso rosto. É tempestade, minha primeira tempestade, com toda a fanfarra da natureza desencadeada, o trovão, os relâmpagos, a chuva, as ondas, os uivos do vento que ruge em cima de nós, em volta de nós.
O barco, carregado como uma palha, sobe e desce a alturas incríveis e a abismos tão profundos, que a gente tem a impressão de não poder mais sair deles. No entanto, apesar desses mergulhos fantásticos, o barco torna a subir, vence mais uma crista de onda e passa e torna a passar. Seguro a barra do leme com as duas mãos, pensando como enfrentar um vagalhão um pouco mais alto que vem vindo mas, na hora em que aponto o barco para cortá-lo, faço-o rápido demais e deixo entrar grande quantidade de água. O barco todo fica inundado. Deve haver mais de 75 centímetros de água. Nervosamente, sem querer, fico enviesado diante de uma onda, o que é extremamente perigoso, e o barco fica tão inclinado, prestes a virar, que devolve uma enorme quantidade da água que tinha entrado.
– Grande! – grita Clousiot. – Você entende um bocado, Papillon! Você foi rápido para esvaziar o barco.
– Pois é, você viu? – digo-lhe.
Se ele soubesse que, pela minha falta de experiência, quase a gente afundava, virando em alto-mar… Desisto de lutar contra o curso das ondas, não me preocupo mais com a direção a seguir, simplesmente mantenho o barco em equilíbrio, na medida do possível. Pego as ondas a três quartos, desço voluntariamente ao fundo com elas e subo novamente, junto com o próprio mar. Logo me dou conta de que minha descoberta é importante e que assim eu eliminei noventa por cento do perigo. A chuva pára, o vento sopra sempre com fúria, mas agora posso enxergar bem a frente e atrás de mim. Atrás está claro; na frente, preto, e nós estamos no meio desses dois extremos.
Lá pelas 5 horas, tudo já passou. O sol brilha de novo em cima de nós, o vento é normal, as ondas menos altas; iço a vela e partimos novamente, satisfeitos. Com umas panelas, meus companheiros tiraram a água que restava dentro do barco. Tiramos as cobertas: amarradas ao mastro, com o vento vão secar-se logo. Arroz, farinha, óleo e café duplo, um bom gole de rum. O sol desce, iluminando com todos os seus fogos este mar azul, num quadro inesquecíveclass="underline" o céu está todo vermelho-pardacento; o sol, em parte afundado no mar, projeta longas línguas amarelas, tanto em direção ao céu e a algumas nuvens brancas, quanto em direção ao mar; as ondas, subindo, são azuis no fundo, depois verdes, e a crista vermelha, rosa ou amarelai de acordo com a cor tio raio que a toca.
Uma paz me invade com uma doçura pouco comum e, com a paz, a sensação de que posso ter. confiança em mim. Havia perdido bastante dessa confiança e a pequena tempestade foi muito útil para mim. Sozinho, aprendi como manobrar nesses maus momentos. Vou enfrentar a noite com uma serenidade completa.
– Então, Clousiot, você viu aquela manobra para esvaziar o barco?
– Amigo, se você não fizesse isso e se uma outra onda nos apanhasse naquela situação, a gente afundava. Você é um campeão.