– Sentem-se, senhores – diz a jovem, que puxa duas poltronas de vime para a frente.
– Obrigado, senhoras, não se incomodem conosco.
– Por quê? Sabemos de onde vocês vêm, fiquem tranqüilos. Bem-vindos a esta casa!
O homem é advogado, chama-se Dr. Bowen, tem seu escritório na capital, a 40 quilômetros, em Port-of-Spain, capital de Trinidad. Trazem chá com leite, torradas, manteiga, geléia. Foi nossa primeira noite de homens livres, nunca mais vou esquecer. Nem uma palavra sobre o passado, nenhuma pergunta indiscreta, somente há quantos dias estávamos no mar e como foi a viagem; se Clousiot sofria muito e se nós queríamos avisar a polícia amanhã ou esperar mais um dia antes de avisá-la; se tínhamos parentes vivos, mulheres, filhos. Se queríamos escrever para eles, as cartas seriam colocadas no correio. O que quer dizer: uma recepção excepcional, tanto do povo na praia quanto dessa família cheia de atenções incríveis para com três foragidos
O Dr. Bowen consulta pelo telefone um médico, que diz para levarmos o ferido à sua clínica amanhã de tarde, para ele tirar uma radiografia e ver o que precisa fazer. O Dr. Bowen telefona para Port-of-Spain, ao comandante do Exército da Salvação. Ele diz que vai providenciar para nós um quarto na hospedaria do Exército da Salvação, que poderemos ir quando quisermos, e que devemos deixar o barco bem guardado, se for bom, porque vamos precisar dele para ir embora. Pergunta se somos forçados ou exilados: respondemos que somos forçados. O advogado parece gostar do fato de sermos forçados.
– Querem tomar banho e fazer a barba? – pergunta a jovem. – Por favor, não recusem, isso não nos incomoda nem um pouco. No banheiro vão encontrar umas roupas, espero que sirvam.
Vou ao banheiro, tomo um banho, faço a barba e saio bem penteado e com uma calça cinzenta, uma camisa branca, sapatos de tênis e meias brancas.
Um índio bate à porta com um pacote debaixo do braço e o dá para Maturette, dizendo que o médico falou que eu era mais ou menos do mesmo tamanho do doutor e que não precisava de nada para me vestir, mas que ele, o pequeno Maturette, não conseguiria encontrar roupas para seu uso porque ninguém na casa do advogado tinha seu tamanho. Faz uma mesura na frente da gente, como os muçulmanos, e se retira. Diante de tanta bondade, o que dizer? A emoção que enche meu coração é indescritível. Clousiot vai deitar-se primeiro e nós cinco ficamos trocando idéias sobre coisas diferentes. O que mais intrigava as encantadoras senhoras era o que pensávamos fazer para reconstruir nossa existência. Nada do passado, tudo a respeito do presente e do futuro. O Dr. Bowen lastimava que Trinidad não permitisse que os foragidos se instalassem na ilha. Ele explica que, por várias vezes, havia solicitado essa medida para alguns, mas nunca fora aceita.
A jovem fala um francês castiço, como o pai, sem sotaque nem erros de pronúncia. É loira, cheia de pintinhas e deve ter entre dezessete e vinte anos. prefiro não perguntar sua idade. Ela diz:
– Vocês são muito jovens e a vida espera por vocês; não sei o que fizeram para ser condenados e não quero saber, mas o fato de terem a coragem de se lançar no mar num barco tão pequeno, para fazer uma viagem tão longa e tão perigosa, demonstra que vocês estão dispostos a pagar qualquer preço para serem livres, e isso tem muito mérito.
Dormimos até as 8 da manhã. Ao levantar, encontramos a mesa posta. As duas senhoras falam muito naturalmente que o Dr. Bowen partiu para Port-of-Spain e só vai voltar à tarde com as informações necessárias para agir em nosso favor.
Esse homem que abandona a casa com três forçados foragidos dá uma lição sem igual para nós, querendo dizer: “Vocês são pessoas normais; julguem se tenho ou não confiança em vocês; doze horas depois de conhecer vocês, deixo-os sozinhos na minha casa, com minha esposa e minha filha”. É uma maneira muda de nos dizer também: “Depois de conversar com vocês três, vi seres perfeitamente dignos de confiança ao ponto de me sentir seguro de que nem por gestos nem por palavras vão se portar mal dentro de minha casa; por isso vou deixá-los no meu lar, como se fossem velhos amigos”. Essa manifestação nos emocionou muito.
Não sou um intelectual para pintar, caro leitor – se um dia esse livro tiver leitores -, com a intensidade necessária, com inspiração bastante forte, a emoção, a formidável impressão de respeito por nos mesmos; sentimos que éramos capazes de uma reabilitação, senão de uma nova vida. Esse batismo imaginário, esse banho de pureza, essa elevação do meu ser acima do lodo onde eu estava atolado, essa maneira de me colocar diante de uma responsabilidade real da noite para o dia acabam de fazer de mim um outro homem de uma maneira tão simples, que o complexo do forçado que mesmo livre traz consigo seus grilhões e acredita que alguém sempre o vigia, que tudo que vi, passei e suportei, tudo que agüentei, tudo que me levava a ser um homem tarado, podre, perigoso, passivamente obediente por fora e terrivelmente insidioso em sua revolta, tudo isso desapareceu como por encanto. Obrigado, Dr. Bowen, advogado de Sua Majestade, obrigado por ter feito de mim um outro homem em tão pouco tempo!
A loiríssima jovem dos olhos azuis corno o mar está sentada comigo, embaixo dos coqueiros da casa de seu pai. Buganvílias vermelhas, amarelas e malva, todas floridas, dão ao jardim o toque de poesia que é necessário neste instante.
– Senhor Henri (ela diz “Senhor”; há quanto tempo não me chamam de “Senhor”!), como papai disse ontem, uma incompreensão injusta das autoridades inglesas faz com que infelizmente vocês não possam ficar aqui. Eles dão apenas quinze dias para que vocês descansem e tornem a partir por mar. De manhã cedo fui ver seu barco, é muito leve e pequeno para a viagem tão longa que os aguarda. Espero que vocês cheguem a uma nação mais hospitaleira que a nossa e mais compreensiva. Todas as ilhas inglesas têm a mesma atitude nesses casos. Peço ao senhor que, se na futura viagem sofrer muito, não guarde rancor do povo que vive nessas ilhas; ele não é responsável por essa maneira de ver as coisas, são ordens da Inglaterra, emanadas de pessoas que não conhecem vocês. O endereço de papai é 101 Queen Street, Port-of-Spain, Trinidad. Peço-lhe, se Deus quiser que isso seja possível, que nos escreva algumas palavras para sabermos do seu destino.
Fico tão emocionado, que não sei o que responder. A Sra. Bowen aproxima-se de nós. É uma mulher muito bonita; tem uns quarenta anos, cabelos de um loiro-escuro, olhos verdes. Usa um vestido branco muito simples, preso por um cordão branco, e umas sandálias verde-claro.
– Senhor, meu marido só vai voltar às 5 horas. Está tentando conseguir que vocês possam ir no seu carro, sem escolta policial, até a capital. Quer evitar também que vocês passem a primeira noite na Estação de Polícia de Port-of-Spain. O seu amigo ferido irá diretamente para a clínica de um medico amigo, e vocês dois irão para a hospedaria do Exercito da Salvação.
Maturette vem encontrar-se com a gente no jardim, foi ver o barco que está cercado, ele diz, de curiosos. Não mexeram em nada. Examinando o barco, os curiosos encontraram uma bala encravada na parte de baixo do leme, alguém pediu licença para tirá-la como lembrança. Ele respondeu: “Captain, captain”. O índio compreendeu que precisava perguntar ao capitão. Lá pelas tantas, o índio quer saber por que não soltamos as tartarugas.
– Vocês têm tartarugas? – pergunta a jovem. – Vamos ver.
Vamos até o barco. No caminho, um indiozinho encantador pega sem cerimônias a minha mão. “Good afternoon”, boa tarde, dizia toda essa gente colorida. Tiro as duas tartarugas;
– O que é que a gente vai fazer? Vamos jogá-las no mar? Ou a senhora quer ficar com elas para pôr no seu jardim?
– O tanque do quintal é de água do mar. Vamos colocá-las nesse tanque, assim terei uma lembrança sua.
– Isso mesmo – respondo.