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Como dois besouros atraídos pelas lâmpadas, vamos nós dois, Maturette e eu, tropeçando de botequim em botequim. Ao desembocar numa pequena praça inundada de luz, vejo a hora, no relógio de uma igreja ou de um templo: 2 horas. São 2 horas da manhã! Depressa, vamos para casa! Já abusamos da situação. A capitoa do Exército da Salvação vai ter de nós uma opinião muito esquisita. Vamos voltar depressa. Pego um táxi para nos levar, two dollars. Pago e entramos muito envergonhados na hospedaria. No hall, uma soldada do Exército da Salvação, loira, jovem, dos seus 25 a trinta anos, nos acolhe gentilmente. Não parece espantada nem chocada por voltarmos tão tarde. Depois de algumas palavras em inglês que adivinhamos serem amáveis e acolhedoras, ela nos dá a chave do quarto e nos deseja boa noite. Deitamos. Na valise encontrei um pijama. Antes de apagar a luz, Maturette me diz:

– Acho que a gente podia agradecer ao bom Deus por tudo que nos deu em tão pouco tempo. Que é que você diz, Papi?

– Agradece por mim ao teu bom Deus, é um grande sujeito. Como você diz muito bem, ele foi bárbaro de generosidade conosco. Boa noite – e apago a luz.

Essa ressurreição, essa volta do túmulo, essa saída do cemitério onde eu estava enterrado, todas essas emoções sucessivas e o banho desta noite, que me reintegrou na vida ao lado de outras criaturas, me excitaram tanto, que não consigo dormir. No calidoscópio dos meus olhos fechados, as imagens, as coisas, toda essa mistura de sensações chegam ao meu espírito sem ordem cronológica e se apresentam com precisão, mas de modo completamente desordenado: o tribunal, a Conciergerie, a seguir os leprosos, depois Saint-Martin-de-Ré, Tribouillard, Jesus, a tempestade… Numa dança fantasmagórica, parece que tudo o que vivi neste último ano está querendo se apresentar ao mesmo tempo na galeria das minhas recordações. Por mais que procure espantar essas imagens, não consigo. E o mais engraçado é que elas estão misturadas aos gritos dos porcos, do hocco, ao ulular do vento, ao marulho das ondas, tudo revestido pela música dos violões de uma corda só que os hindus tocavam há poucos instantes nos diversos bares por onde passamos.

Por fim, adormeço ao despontar do dia. Pelas 10 horas, batem à porta. É o Dr. Bowen, sorridente:

– Bom dia, amigos. Ainda deitados? Vocês voltaram tarde. Divertiram-se bastante?

– Bom dia. Sim, voltamos tarde, desculpe.

– De nada, ora essa! É muito natural, depois de tudo que sofreram. Vocês tinham de aproveitar a primeira noite de homens livres Estou aqui para acompanhá-los à Delegacia de Polícia. Vocês têm que se apresentar à polícia para declarar oficialmente que entraram no país clandestinamente. Depois dessa formalidade, iremos ver o seu amigo. Ele fez radiografia hoje muito cedo. Saberemos o resultado mais tarde.

Depois de nos lavarmos rapidamente, descemos para o vestíbulo, onde encontramos Bowen à nossa espera, ao lado do capitão.

– Bom dia, amigos – diz em mau francês o capitão.

– Bom dia para todos, tudo vai bem? – uma graduada do Exército da Salvação nos diz. – Vocês gostaram de Port-of-Spain?

– Oh, sim, senhora! Ficamos encantados.

Tomamos uma xicrinha de café e seguimos para a delegacia. Vamos a pé, pois dista apenas 200 metros. Todos os policiais nos saúdam e nos olham sem qualquer curiosidade especial. Entramos num escritório austero e imponente, depois de passar por duas sentinelas cor de ébano, de uniforme cáqui. Um oficial dos seus cinqüenta anos, camisa e gravata cáquis, coberto de insígnias e de medalhas, levanta-se. Está de short e nos diz em francês:

– Bom dia. Sentem-se. Antes de registrar oficialmente as suas declarações, quero conversar um pouco com vocês. Quantos anos vocês têm?

– Vinte e seis anos e dezenove anos.

– Por que foram condenados?

– Por homicídio.

– Quais são as suas penas?

– Trabalhos forçados perpétuos.

– Então não foi homicídio simples, foi homicídio qualificado?

– Não, senhor. O meu foi um homicídio simples.

– Comigo foi um homicídio qualificado – diz Maturette. – Eu tinha dezessete anos.

– Aos dezessete anos, a gente já sabe o que faz – diz o oficial. – Na Inglaterra, se o fato fosse provado, você teria sido enforcado. Muito bem, as autoridades inglesas não têm que julgar a justiça francesa. Mas não estamos de acordo é com o desterro dos condenados na Guiana Francesa. Sabemos que é um castigo desumano e indigno de uma nação civilizada como a França. Mas, infelizmente, vocês não podem ficar em Trinidad ou em qualquer outra ilha britânica. É impossível. Por isso, peço-lhes que procedam honestamente e não procurem escapatória, doença ou qualquer outro pretexto, para retardar sua saída. Vocês podem descansar livremente em Port-of-Spain de quinze a dezoito dias. O seu barco é bom, ao que dizem. Vou dar ordem para que o tragam aqui ao porto. Se houver reparações a fazer, os carpinteiros da Marinha Real se encarregarão disso. Antes de partir, vocês receberão uma boa bússola e uma carta marítima. Espero que os países sul-americanos recebam bem vocês, mas não procurem a Venezuela, pois ali vocês serão presos e obrigados a trabalhar nas estradas até serem entregues às autoridades francesas. Depois de um grande erro, um homem não é obrigado a ficar perdido para sempre. Vocês são jovens e têm saúde, têm um jeito simpático e espero que, depois de tudo que sofreram, nunca mais se darão por vencidos. O simples fato de terem vindo para este país demonstra o contrário. Sinto-me feliz em poder ajudá-los a se tornarem homens bons e responsáveis. Boa sorte. Se vocês tiverem algum problema, telefonem para este número, que serão atendidos em francês.

Ele toca uma campainha e um funcionário civil nos vem buscar. Numa saia onde vários policiais e civis estão batendo a máquina, outro funcionário à paisana toma as nossas declarações.

– Por que vieram a Trinidad?

– Para descansar.

– De onde vocês vêm?

– Da Guiana Francesa.

– Para fugir, vocês cometeram algum delito, provocaram lesões ou morte em outras pessoas?

– Não ferimos ninguém gravemente.

– Como é que vocês sabem?

– Soubemos antes de partir.

– Quais são suas idades, suas situações penais em relação à justiça francesa? (etc). Senhores, vocês têm de quinze a dezoito dias para descansar aqui. Estão completamente livres para fazer o que quiserem durante esse tempo. Se mudarem de moradia, avisem-nos. Eu sou o sargento Willy. Aqui está o meu cartão, com dois telefones: um é o meu número oficial na polícia; o outro, meu número particular. Seja o que for que lhes aconteça, se precisarem de minha ajuda, me chamem imediatamente. Temos confiança em vocês. Estou certo que se comportarão corretamente.

Alguns instantes depois, o Dr. Bowen nos acompanha à clínica. Clousiot está contente de nos ver. Nada lhe contamos da noite que passamos nos divertindo na cidade. Apenas lhe dizemos que estamos autorizados a passear à vontade. Ele fica tão surpreendido, que nos diz:

– Sem escolta?

– Sim, sem escolta.

– Ora essa, então os rosbifes (os ingleses) são uns caras muito gozados!