Já é noite. Estou só em minha cela. Uma forte lâmpada no teto permite que o guarda me vigie por um orifício na porta. A luz possante ofusca meus olhos. Coloco o lenço dobrado sobre os olhos, pois a claridade é realmente insuportável. Estendido no colchão sobre a cama de ferro, sem travesseiro, evoco todos os detalhes do desgraçado processo.
Chegado a este ponto, para que se possa compreender a continuação desta longa narrativa, para que se percebam as bases que me serviram de sustentáculo em minha luta, precisarei talvez me alongar bastante para contar tudo que passou pela minha mente nos primeiros dias em que me tornei um enterrado vivo.
O que hei de fazer quando conseguir escapar? Pois agora estou com o canudo e não duvido um só instante de que um dia hei de fugir.
Em primeiro lugar, voltarei a Paris o mais depressa possível. O primeiro a liquidar é Polein, a falsa testemunha. Depois, os dois tiras. Mas dois policiais não bastam, tenho que matar todos os agentes da polícia. Pelo menos, o maior número possível. Ah, já sei! Uma vez livre, volto a Paris. Encho uma mala de explosivos. Quantos quilos, não sei; dez, quinze ou vinte. E procuro calcular quantos explosivos seriam necessários para fazer o maior número de vítimas.
Dinamite? Não, é preferível cheddite. E por que não nitroglicerina? Bom, não tem importância; pedirei instruções àqueles que sabem mais do que eu. Mas os policiais que me dêem um crédito de confiança, hei de fazer as contas e eles serão bem servidos.
Continuo de olhos fechados e com o lenço sobre as pálpebras. Vejo nitidamente a mala, de aparência inofensiva, carregada de explosivos, e o despertador, bem regulado, que acionará o detonador. Atenção, ela tem que explodir às 10 horas da manhã, na sala de relatórios da Polícia Judiciária, no Quai des Orfèvres n.° 36, primeiro andar. Nessa hora, lá estarão pelo menos 150 investigadores, reunidos para receber ordens e ouvir os relatórios. Quantos degraus para subir? Não posso me enganar.
Será preciso calcular rigorosamente o tempo necessário para que a mala chegue da rua ao destino no segundo exato em que deve explodir. E quem carregará a mala? Bem, aí é que tenho de bancar o corajoso. Chego de táxi, bem diante da porta da Polícia Judiciária, e digo aos dois guardas de serviço, com voz imperativa: “Me subam esta mala na sala dos relatórios, eu já os acompanho. Digam ao comissário Dupont que essa mala foi enviada pelo inspetor-chefe Dubois e que eu já vou subir”.
Mas será que obedecem? E se, por acaso, nesse monte de imbecis, eu caio sobre os dois únicos inteligentes da corporação? Então estará tudo perdido. Será preciso encontrar outra coisa. Procuro, procuro, não podendo admitir que não consiga encontrar um meio cem por cento garantido.
Levanto-me para beber um pouco de água. De tanto pensar, estou com dor de cabeça.
Torno a me deitar sem o lenço, os minutos se escoam lentamente. E esta luz, esta luz na minha cara, Deus do céu! Molho o lenço e torno a colocá-lo. A água fresca me faz bem e, com o peso da água, o lenço adere melhor às pálpebras. Daqui por diante empregarei sempre este meio.
Essas longas horas em que arquiteto minha futura vingança são tão intensas, que eu me vejo agindo exatamente como se o projeto estivesse em vias de execução. Toda a noite e mesmo durante uma parte do dia, estou vagando por Paris, como se a minha fuga já fosse fato consumado. Tenho certeza, hei de escapar e de voltar a Paris. Bem entendido, a primeira coisa a fazer será apresentar a conta a Polein e, em seguida, aos policiais. E os jurados? Esses calhordas vão continuar a viver tranqüilos? Decerto voltaram para casa, esses nojentos, satisfeitíssimos por haverem cumprido o seu Dever, com D maiúsculo, arrotando importância, inchados de orgulho, bancando os heróis junto aos vizinhos e às respectivas patroas, que os esperam, despenteadas, para papar a sopa.
Muito bem. Que fazer, então, com os jurados? Nada. São uns pobres cretinos. Não estão preparados para serem juizes. Se um cara for guarda-civil ou alfandegário aposentado, ele reage como guarda-civil ou alfandegário. Se for leiteiro, como um labrego qualquer. Eles ficaram embasbacados pela oratória do promotor, que não teve dificuldade em pô-los no saco. Eles são verdadeiramente irresponsáveis. Então está decidido, julgado e acertado: não lhes farei mal nenhum.
Ao descrever todos esses pensamentos, que realmente passaram pela minha cabeça já faz tantos anos e que agora voltam em tropel com uma terrível nitidez, penso até que ponto o silêncio absoluto, o isolamento completo, total, infligido a um homem moço, fechado numa solitária, podem provocar, antes de causarem a loucura, uma verdadeira vida imaginativa. Tão intensa, tão viva, que o homem literalmente se desdobra. Ele sai voando e vai passear onde melhor lhe parece. Rememora sua casa, seu pai, sua mãe, sua família, sua infância, as diversas etapas da sua vida. E, além de tudo isso, viaja pelos castelos da Espanha que o seu espírito fecundo inventa, com imaginação tão incrivelmente aguda, que, nesse desdobramento fabuloso, chega a crer que vive tudo aquilo que está sonhando.
Trinta e seis anos já se passaram, mas é sem o menor esforço de memória que a minha caneta corre para relembrar o que realmente pensei naquele momento da minha vida.
Pois bem, não vou fazer mal aos jurados. Mas, o promotor público? Ah, esse não me escapa! Aliás, tenho para ele uma receita já pronta, dada por Alexandre Dumas em O Conde de Monte Cristo: aquele sujeito metido no calabouço e que deixavam morrer de fome.
É ele o grande responsável. Abutre vestido de vermelho, merece ser executado da maneira mais horrível. Logo depois de liquidar Polein e os tiras, tratarei exclusivamente dessa ave de rapina. Alugarei uma casa isolada. Deverá ter uma adega muito profunda, com paredes espessas e uma porta pesada. Se a porta não for bastante grossa, eu a forrarei com um colchão e estopa. Quando tiver a casa, localizarei e raptarei o homem. Como já terei pregado anéis de ferro na parede, amarro-o com uma corrente logo que chegar. Então começo a degustar a boa sopa!
Estou em frente dele, vejo-o com extraordinária precisão através das minhas pálpebras fechadas. Sim, olho-o da mesma maneira que ele me olhava no tribunal. A cena é tão clara e nítida, que sinto o calor do seu hálito no meu rosto, pois estou perto dele, face a face, quase que nos tocamos.
Seus olhos de gavião estão deslumbrados e apavorados pelo facho de uma lanterna muito forte que projeto sobre ele. Grossas gotas de suor escorrem em seu rosto congestionado. Sim, ouço minhas perguntas, escuto suas respostas. Vivo intensamente esse momento.
“Seu grandessíssimo porco, você me reconhece? Sou eu, Papillon, que você despachou tão alegremente para os ‘duros’ (*). Você acha que valeu a pena ter estudado tantos anos para chegar a ser um homem muito instruído, ter passado noites em claro debruçado sobre os códigos romanos e outros, ter aprendido o latim e o grego, sacrificado anos de juventude, para ser um grande orador? Para chegar a quê, seu corno? A criar uma nova e boa lei social? A convencer os povos de que a paz é a melhor coisa do mundo? A pregar a filosofia de uma maravilhosa religião? Ou simplesmente a influenciar os outros, graças à superioridade do seu preparo universitário, para que se tornem melhores e deixem de ser malvados? Diga, você empregou o seu saber para salvar os homens ou para afogá-los?
“Nada disso, uma só aspiração faz você agir: subir, subir sempre. Escalar todos os degraus da sua carreira nojenta. A glória para você consiste em ser o melhor fornecedor das penitenciárias, o provedor desenfreado do carrasco e da guilhotina.