– Caramba! Antonio, hijo mio (meu filho)!
De muito longe, Antonio havia reconhecido o cavaleiro; nada disse, mas é certo que sabia quem estava chegando. É um belo tipo, de seus quarenta anos, pele bronzeada. Desce do cavalo e os dois se dão mutuamente grandes pancadas nas costas. Esse modo de se abraçar, eu observei mais tarde em toda a parte.
– E quem é esse aí?
– Compañero de fuga, un francés.
– Aonde vai?
– O mais perto possível dos pescadores índios. Ele quer passar pelo território dos índios, entrar na Venezuela e ali buscar um meio para voltar a Aruba ou a Curaçau.
– Índio guajiro é mau – diz o homem. – Você não está armado, tome lá – e me entrega um punhal de cabo de chifre, dentro de sua bainha de couro.
Sentamo-nos à beira da vereda. Tiro os sapatos, meus pés estão ensangüentados. Antonio e o cavaleiro falam rapidamente; vê-se claramente que não lhes agrada a minha idéia de atravessar Guajira. Antonio, com um gesto, me manda subir na garupa; com meus sapatos amarrados no ombro, vou ficar descalço para secar minhas feridas. Compreendo tudo isso por gestos. O cavaleiro monta no cavalo. Antonio me ajuda e, sem entender muito bem, sou levado a galope, escanchado atrás daquele amigo. Trotamos o dia inteiro e a noite toda. Paramos de vez em quando e ele me passa uma garrafa de anis; bebo um pouco de cada vez. Ao despontar do dia, ele pára. O sol se levanta; ele me dá um pedaço de queijo duro como pedra, duas bolachas, seis folhas de coca e um saco especial para carregá-las impermeável, para pendurar no cinto. Aperta-me nos braços, batendo nas minhas costas, como fez com Antonio, torna a montar a cavalo e parte a toda brida.
Caminho até 1 hora da tarde. Não há mais nenhuma árvore, nenhum mato, no horizonte. O mar está brilhando, prateado, e acima dele o sol queima. Caminho descalço, meus sapatos estão sempre dependurados, um de cada lado do ombro esquerdo. No momento em que resolvo me deitar, parece-me que estou vendo ao longe, bem afastadas da praia, cinco ou seis arvores ou pedras grandes. Procuro calcular a distância: 10 quilômetros, talvez. Apanho metade de uma folha grande de coca e, mastigando-a, recomeço minha caminhada em um passo bastante rápido. Uma hora depois, identifico as cinco ou seis coisas: são cabanas com teto de bambu, ou de palha, ou de folhas marrom-claro. De uma delas está saindo fumaça. Em seguida, vejo pessoas e elas já me viram. Percebo que um grupo grita e faz gestos na direção da praia. Vejo, então, quatro barcos que se aproximam rapidamente da praia e desembarcam umas dez pessoas. Todos estão reunidos diante das casas e olham para mim… Vejo nitidamente que tanto os homens como as mulheres estão nus, têm somente alguma coisa presa na frente para esconder o sexo. Caminho devagar na direção deles. Três estão segurando arcos, com flechas na mão. Não fazem gestos, nem de hostilidade, nem de amizade. Um cachorro começa a latir e, irritado, se lança sobre mim. Acaba me mordendo na parte de baixo da barriga da perna e arranca um pedaço da calça… Quando torna a investir, é atingido no traseiro por uma pequena flecha, saída não sei de onde (depois fiquei sabendo: de uma zarabatana), foge ganindo e parece entrar numa casa. Aproximo-me mancando, pois a mordida foi realmente séria. Paro a apenas 10 metros do grupo. Nenhum deles se mexe nem diz nada, as crianças ficam atrás das mães. Os corpos, cor de cobre, nus, musculosos, são esplêndidos. As mulheres têm seios empinados, duros e firmes, com bicos enormes. Só uma delas tem seios grandes e caídos.
A aparência de um deles é tão nobre, seus traços são tão finos, sua raça é de uma nobreza que se manifesta tão claramente, que caminho diretamente em sua direção. Ele não tem arco nem flecha. É tão alto como eu, seus cabelos estão bem cortados, com uma franja comprida que se detém na altura das sobrancelhas. Suas orelhas estão escondidas pelos cabelos, que, na parte de trás, chegam à altura do lóbulo das orelhas e são negros como azeviche, quase violeta. Seus olhos são cinzentos como ferro. Não tem um só pêlo, quer no peito, quer nos braços, quer nas pernas. As coxas, cor de cobre, são musculosas, as pernas são bem torneadas e esbeltas. Está descalço. A 3 metros dele, paro. Ele, então, dá dois passos e me olha fixamente nos olhos. Esse exame dura dois minutos. O rosto, onde nada se move, parece o de uma estátua de cobre de olhar severo. Depois, ele sorri e me toca o ombro. Em seguida, todos me tocam e uma jovem índia me segura pela mão e me leva à sombra de uma das cabanas. Lá, ela ajeita a perna da minha calça. Todo mundo está em volta, sentado em círculo. Um homem me estende um cigarro aceso, aceito-o e começo a fumar. Todos riem da minha maneira de fumar, pois eles – tanto os homens como as mulheres – fumam com a brasa dentro da boca. A ferida não está mais sangrando, mas falta um pedaço mais ou menos do tamanho da metade de uma moeda de 5 francos. A mulher arranca os pêlos e, quando tudo já está bem depilado, lava a ferida com a água do mar que uma indiazinha fora buscar. Com a água, ela pressiona, para fazer o sangue correr outra vez. Ainda não satisfeita, espeta cada lesão com um ferro pontudo. Como todo mundo está me olhando, esforço-me para não me agitar. Outra índia jovem quer ajudá-la, mas ela a repele com dureza. Todos riem desse gesto. Compreendo que ela quisera mostrar à outra que eu lhe pertencia com exclusividade e que foi por isso que todos riram. Depois, ela corta as duas pernas da minha calça logo acima dos joelhos. Sobre uma pedra, prepara algas do mar que lhe trouxeram, coloca-as sobre a ferida e prende-as com o pano tirado da calça. Contente com seu trabalho, faz-me sinal para que eu me levante.
Levanto-me, começo a tirar a roupa. Neste momento, ela vê logo abaixo do colarinho uma borboleta que me fiz tatuar perto da base do pescoço. Olhando-a e descobrindo outras tatuagens, dispõe-se a me tirar a camisa ela mesma, para ver melhor. Todos, homens e mulheres, estão muito interessados nas tatuagens de meu peito: à direita, algemas de Calvi; à esquerda, uma cabeça de mulher; sobre o estômago, o focinho de um tigre; sobre a coluna vertebral, um grande marinheiro crucificado e sobre toda a largura dos rins uma cena de caça com caçadores, palmeiras, elefantes e tigres. Ao perceberem essas tatuagens, os homens afastam as mulheres e se põem a examinar longamente, minuciosamente, cada tatuagem, tocando-a. Cada um dá a sua opinião e, antes de todos, o chefe. A partir desse momento, estou aceito pelos homens. As mulheres me haviam aceitado desde o início, quando o chefe sorrira e me tocara o ombro.
Entramos na maior das cabanas e lá eu me sinto completamente desconcertado. O chão é de terra batida, vermelha, cor de tijolo. A cabana tem oito portas, é redonda, as vigas suportam redes de cores vivas, feitas de pura lã. No centro, uma pedra redonda e achatada, castanha e polida, cercada de outras pedras chatas para servirem de assento. Nas paredes, vários fuzis de cano duplo e um sabre militar. Espalhados por toda parte, arcos de variadas dimensões. Noto também uma carapaça de tartaruga na qual um homem, poderia se deitar, um fogão de pedras secas bem dispostas umas sobre as outras, sem qualquer indício de cimento. Sobre a mesa, metade de uma cabaça contendo no fundo uns dois ou três punhados de pérolas. Num chifre de boi, dão-me para beber um suco de fruta fermentado, agridoce, muito bom; em seguida, sobre uma folha de bananeira, trazem-me um peixe grande de pelo menos 2 quilos, assado sobre a brasa. Convidam-me a comer e eu como lentamente. Quando acabo o peixe, que estava delicioso, a mulher me toma pela mão e me leva à praia, onde lavo as mãos e a boca com a água do mar. Depois, voltamos. Com os outros sentados em círculos e a jovem índia a meu lado, a mão na minha coxa, tentamos trocar algumas informações a nosso respeito por meio de gestos e palavras.
Num movimento único, o chefe se levanta, vai até o fundo da cabana, volta com um pedaço de pedra branca e faz desenhos sobre a mesa. Começa por desenhar índios nus, a aldeia deles e depois o mar. À direita do povoado indígena, casas com janelas, homens e mulheres vestidos. Os homens aparecem com um fuzil na mão ou com um pedaço de pau. À esquerda, outro povoado, homens com fuzil e chapéu, caras antipáticas, mulheres vestidas. Depois de eu ter observado bastante os desenhos, ele percebe que esquecera qualquer coisa e desenha um caminho que vai da aldeia indígena ao povoado da direita e outro que segue pela esquerda, na direção do outro povoado. Para me indicar como eles estão colocados em relação à aldeia, ele desenha na costa venezuelana, à direita, um sol, representado por um círculo do qual saem raios em todas as direções e, na costa colombiana, do lado da outra aldeia, um sol cortado no horizonte por urna linha sinuosa. Não havia como se enganar: de um lado, o sol nascia; do outro, se punha. O jovem chefe olha com orgulho para sua obra. Todos a olham, cada um por sua vez. Quando percebe que compreendi mesmo o que ele queria dizer, empunha novamente o giz e cobre de traços os povoados de ambos os lados, deixando intata somente a sua aldeia. Compreendo que ele quer me dizer que as pessoas daqueles lugares são más, que ele não quer nada com elas e só a sua aldeia é boa. A quem o diz!