“Se Deibler (**) fosse um pouco agradecido mandaria a cada fim de ano para você uma caixa do melhor champanha. Não foi graças a você, espécie de porco, que ele conseguiu cortar cinco ou seis cabeças a mais neste ano? De qualquer maneira, sou eu quem prende você agora, acorrentado solidamente nessa parede. Lembro-me do seu sorriso, lembro-me do seu ar triunfante, quando leram minha condenação depois do requisitório. Parece-me que foi ontem e contudo já se passaram tantos anos. Quantos anos, dez, vinte?”
(*) Condenados a trabalhos forçados, em degredo, na colônia penal.
(**) Carrasco oficial da França em 1932.
Mas o que se passa comigo? Por que dez anos? Por que vinte anos? Apalpe-se bem, Papillon, você é forte, jovem e na barriga tem 5 600 francos. Dois anos, sim, farei dois anos de perpétua, nada mais do que isso – é um juramento que faço a mim mesmo.
Ora, está ficando bobo, Papillon. Esta célula, este silêncio deixam você louco. Estou sem cigarros. Acabo de fumar o último. Vou andar pela cela. Afinal, não preciso ter os olhos fechados, nem cobertos com o lenço para continuar a ver o que se vai passar. Muito bem, levanto-me. A célula tem 4 metros de comprimento, ou seja, cinco passos pequenos, desde a porta até o muro. Começo a caminhar, com as mãos nas costas. E continuo o meu monólogo:
“Bem. Como já lhe disse, revejo muito claramente seu sorriso triunfante. Pois bem, vou transformá-lo numa careta horrorosa. Assim mesmo, você tem uma vantagem que eu não tinha: eu não podia gritar, mas você pode. Que vou fazer com você? A receita de Dumas? Deixar você morrer de fome? Não, isso não basta. Primeiro, eu furo os seus olhos. Assim, você não poderá mais me ver, mas, por outro lado, eu não terei o prazer de ler as suas reações em suas pupilas. Sim, tem razão, não vou furá-los agora. Fica para mais tarde.
“Vou cortar a sua língua, essa língua tão terrível, que corta como uma faca – mais do que como uma faca, como uma navalha! Essa língua que você prostituiu à sua gloriosa carreira. A mesma língua com que você fala gostoso à sua mulher, aos seus filhos e à sua amante. Mas, que amante! Uma amante, você? Nada disso, acho que você deve ter um macho, isso sim! Você só pode ser um invertido sem-vergonha. De fato, preciso começar cortando sua língua, porque ela é, depois do cérebro, o maior instrumento das suas malvadezas. Graças a ela, que você sabe manejar tão bem, conseguiu convencer o júri a responder ‘sim’ às perguntas formuladas.
“Graças a ela, você apresentou os policiais como homens corretos, que se sacrificam pelo dever; graças a ela, a história falsa da testemunha conseguiu manter-se de pé. Graças a ela, eu aparecia aos doze patetas dos jurados como o homem mais perigoso de Paris. Se não fosse essa sua língua tão pérfida, tão hábil, tão convincente, tão bem treinada em deformar a gente, os fatos e as coisas, eu estaria ainda sentado no terraço do Grand Café da Place Blanche, de onde nunca teria de sair. Então está entendido, vou arrancar essa língua. Mas com que instrumento?”
Caminho pela cela sem parar, minha cabeça está girando, mas estou sempre face a face com ele… quando, de repente, a lâmpada se apaga e a luz do dia consegue infiltrar-se, muito fraca, pelas frestas da tábua da janela.
Como? Já é dia? Passei a noite toda me vingando? Que belas horas acabo de passar! Essa noite tão longa, como foi curta!
Fico escutando, sentado na cama. Nada se ouve. Silêncio total. De vez em quando, ouço um ligeiro clique na minha porta. É o guarda que, de chinelos para não fazer barulho, faz correr o pequeno tampo de ferro, a fim de espiar pelo visor minúsculo que lhe permite vigiar-me sem que eu o perceba.
A máquina concebida pela República Francesa chegou à segunda etapa. Funciona maravilhosamente, pois na primeira eliminou um homem que lhe podia causar aborrecimentos. Mas isso não basta. Ê preciso que esse homem não morra depressa demais, é preciso que não escape pelo suicídio. Precisam dele. Que aconteceria com a administração da penitenciária se não houvesse prisioneiros? Estariam bem arranjados. Então, é preciso vigiar o preso. Ele tem que seguir para a colônia penitenciária, onde servirá para fazer viver outros funcionários. Volto a ouvir o clique na porta da cela, e isso me faz sorrir.
Não se preocupe, carcereiro vagabundo, não vou escapar. Pelo menos, não da maneira que você receia: o suicídio.
Só peço uma coisa: continuar a viver no melhor estado de saúde possível e partir logo para essa Guiana Francesa, para onde, graças a Deus, vocês fazem a besteira de me enviar.
Eu sei que os seus colegas, meu velho carcereiro que produz o clique a todo momento, não são inocentes coroinhas. Você é um bom velho, comparado com os guardas da colônia penal. Já sei disso há muito tempo, pois Napoleão, quando criou a colônia penal e lhe perguntaram: “Quem irá guardar esses bandidos?”, respondeu: “Outros mais bandidos que eles”. Mais tarde pude verificar que o fundador não havia mentido.
Clique-claque, uma portinhola de 20 centímetros por 20 se abre no meio da porta. Passam o café e uma bola de pão de 750 gramas. Já estando condenado, não tenho mais o direito de freqüentar o restaurante, mas, sempre pagando, posso comprar cigarros e alguma comida numa modesta cantina. Mais alguns dias e não haverá mais nada. A Conciergerie é a antecâmara da reclusão. Fumo com delícia um Lucky Strike, cada pacote custa 6,60 francos. Comprei dois. Gasto meu pecúlio, porque será confiscado para pagamento das custas judiciárias.
Dega me manda dizer para ir à desinfecção, por meio de um bilhetinho que encontrei dentro do pão: “Na caixa de fósforos estão três piolhos”. Tiro os fósforos e encontro os piolhos, gordos e bem vivos. Sei o que isso significa. Vou mostrá-los ao vigilante e amanhã ele vai me mandar, com todas as minhas roupas, colchão inclusive, para a câmara de vapor, para matar todos os parasitas – menos nós, é claro. De fato, no dia seguinte, lá me encontro com Dega. Nenhum guarda na câmara de vapor. Estamos sós.
– Obrigado, Dega. Graças a você, recebi o canudo.
– Não te incomoda?
– Não.
– Cada vez que você for à privada, lave bem antes de tornar a colocá-lo.
– Sim. Creio que ele veda bem, pois as notas dobradas em sanfona estão em perfeito estado. No entanto, já estou com ele faz sete dias.
– Então é que é bom mesmo.
– O que você pensa fazer, Dega?
– Vou me fingir de louco. Não quero seguir para a colônia. Aqui na França cumprirei talvez oito ou dez anos. Tenho conhecidos e poderei conseguir pelo menos cinco anos de indulto.
– Quantos anos você tem?
– Quarenta e dois.
– Você está louco! Se você apanhar dez ou quinze anos, sai daqui velho. Você tem medo de ir para os “duros”?
– Sim, tenho medo da colônia penal, não tenho vergonha de dizer, Papillon. Veja, é terrível na Guiana. Cada ano há uma perda de noventa por cento. Um comboio substitui outro e os comboios são de 1 800 a 2 000 homens. Se você não pega a lepra, apanha a febre amarela, ou a disenteria (que não perdoa), ou a tuberculose, o paludismo, a malária infecciosa. Se você escapa de tudo isso, tem uma grande chance de ser assassinado para lhe roubarem o canudo ou então de morrer durante uma evasão. Acredite, Papillon, não é para lhe tirar a coragem que digo isso, mas conheci vários forçados que voltaram à França depois de terem cumprido pequenas penas, de cinco ou sete anos, e sei o que estou dizendo. São verdadeiros farrapos humanos. Passam nove meses por ano no hospital e, no que se refere às fugas, dizem que não é sopa, como muita gente acredita.
– Acredito em você, Dega, mas tenho confiança em mim e lá não hei de esquentar lugar durante muito tempo, fique certo. Sou marinheiro, conheço o mar e você pode estar certo de que não demoro a dar o fora. E você? Já pensou no que é cumprir dez anos de reclusão? Se descontarem cinco, o que não é certo, pensa que poderá agüentar, sem ficar louco, no isolamento completo? Neste momento, nesta cela, onde estou sozinho, sem livros, sem sair, sem poder falar com ninguém, as 24 horas de cada dia não devem ser multiplicadas por sessenta minutos, mas por seiscentos, e ainda assim estará longe da verdade.