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Há um mês que estou ali. Não há engano possível, pois vou marcando os dias num papel. Faz tempo que as agulhas chegaram, com tinta nanquim vermelha, azul, violeta. Na cabana do chefe descobri três navalhas de barbear Solingen. Ele nunca as usa para se barbear, já que os índios são imberbes. Uma das navalhas serve para o corte gradual dos cabelos. Fiz uma tatuagem no braço de Zato, o chefe: um índio com plumas de todas as cores na cabeça. Ele ficou encantado e me fez compreender que não queria que eu fizesse tatuagem alguma nos outros antes de lhe fazer uma grande tatuagem no peito. Quer a mesma carantonha de tigre que eu tenho, com dentes igualmente grandes. Acho graça, não sei desenhar a ponto de fazer uma cabeça tão bonita. Lali me depilou o corpo todo. Logo que vê um pêlo em mim, arranca-o e esfrega no lugar uma pasta feita de alga do mar e cinza. Parece-me que há maior dificuldade, depois, para eles tornarem a crescer.

Essa comunidade índia se chama Guajira. Eles vivem tanto na costa como na planície interior que se estende até o pé das montanhas. Nas montanhas vivem outras comunidades, chamadas Motilones. Nos anos seguintes, eu haveria de lidar com eles. Por intermédio do comércio, conforme já expliquei, os guajiros têm contato com a civilização. Os índios da costa mandam ao índio branco pérolas e também tartarugas. As tartarugas são fornecidas vivas e chegam a pesar até por volta de 150 quilos. Nunca, entretanto, elas chegam ao peso e ao tamanho das do Orinoco ou do Maroni, que atingem 400 quilos e cuja carapaça às vezes vai além de 2 metros de comprimento e 1 metro no ponto de maior largura. Depois de viradas de barriga para cima, as tartarugas não conseguem mais se desvirar. Vi algumas serem levadas depois de terem ficado três semanas de costas no chão, sem comer e sem beber, e elas ainda estavam vivas. Os grandes lagartos verdes, por sua vez, são ótimos para comer. A carne deles é deliciosa, branca e mole; os ovos cozinhados na areia ao sol também são muito saborosos. Só o aspecto deles não anima muito a comê-los.

Cada vez que Lali volta da pesca, traz para casa as pérolas que lhe cabem e as dá para mim. Coloco-as num recipiente de madeira sem separar as grandes, as médias e as pequenas; ficam todas misturadas. Numa caixa de fósforos guardo separadas somente duas pérolas cor-de-rosa, três negras e sete cinzentas de aspecto metálico, fantasticamente belas. Guardo também uma pérola barroca (*) grande que tem o formato e o tamanho de um grão de feijão branco. Essa pérola barroca tem três cores superpostas e, conforme o tempo, uma delas sobressai em relação às outras: a parte negra, a parte cor de aço ou a parte prateada com reflexos cor-de-rosa. Graças às pérolas e a algumas tartarugas, nada falta à tribo. Só que eles têm coisas que não servem para nada e deixam de ter coisas que lhes poderiam ser úteis. Por exemplo: em toda a tribo não há um único espelho. Para poder me barbear e me olhar, precisei encontrar – sem dúvida, proveniente de um naufrágio – uma placa de 40 centímetros, niquelada de um dos lados.

(*) Pérola de superfície irregular.

Minha política em relação aos meus amigos é simples: não faço coisa alguma que possa diminuir a autoridade e o saber do chefe e menos ainda a reputação de um índio muito velho que vive a apenas 4 quilômetros, no interior daquelas terras, cercado de cobras, duas cabras e uma dúzia de carneiros e ovelhas. É o feiticeiro das diferentes aldeias de guajiros. Minha atitude faz com que ninguém me inveje e me olhe com má vontade. Ao fim de dois meses, estou completamente adotado por todos. O feiticeiro tem também umas vinte galinhas. Nas duas aldeias que conheço não há cabras, nem galinhas, nem ovelhas, nem carneiros; concluo, portanto, que a posse de animais domésticos deve ser um privilégio do feiticeiro. Todo dia de manhã, uma índia (elas fazem rodízio) lhe leva peixe e ostras frescas num cesto posto sobre a cabeça. Leva-lhe também broinhas de milho, feitas no mesmo dia e assadas sobre pedras cercadas de fogo. Às vezes – mas não sempre -, elas voltam com ovos e leite coalhado. Quando o feiticeiro quer que eu vá vê-lo, me manda pessoalmente três ovos e uma faca de madeira bem polida. Lali me acompanha até a metade do caminho e me espera à sombra de enormes cactos. Da primeira vez, ela pôs a faca de madeira na minha mão e me fez sinal de ir adiante, na direção de seu braço.

O índio velho vive no meio de uma sujeira enorme, numa tenda feita de couros de boi estendidos, com o lado peludo voltado para dentro. No interior da tenda há três pedras com um fogo que está sempre aceso, a gente percebe. Ele não dorme numa rede e sim numa espécie de cama feita com galhos de árvores e a mais de 1 metro do chão. A tenda é bastante grande, deve ter uns 20 metros quadrados. Não tem paredes: do lado por onde vem o vento há alguns arbustos. Vi duas cobras, uma de cerca de 3 metros, da grossura de um braço; a outra, com mais ou menos 1 metro, tinha um V amarelo na cabeça. Pensei: “Devem comer as galinhas e os ovos”. Não compreendo como podem conviver dentro dessa tenda com as cabras, as galinhas, as ovelhas e também um jumento. O índio velho me examina de cima a baixo, me faz tirar as calças transformadas num short por Lali e, quando estou nu como um verme, faz com que me sente sobre uma pedra perto do fogo. Põe no fogo umas folhas verdes que fazem muita fumaça e cheiram a hortelã. A fumaça me envolve a ponto de sufocar, mas quase não tusso e durante uns dez minutos espero que isso passe. Depois, ele queima as minhas calças e me dá dois cache-sexe de índio, um de couro de carneiro e outro de cobra, mole como uma luva. Coloca no meu braço um bracelete feito com tiras de couro trançado de cabra, de carneiro e de cobra. É um bracelete com 10 centímetros de largura e se prende por intermédio de uma tira de couro de cobra que a gente aperta ou afrouxa à vontade.

No tornozelo esquerdo, o feiticeiro tem uma ferida do tamanho de uma moeda de 2 francos, coberta de moscas. De vez em quando, ele as enxota e, nas horas em que elas insistem demais, espalha cinza em cima da chaga. Aceito pelo feiticeiro, disponho-me a partir, quando ele me dá uma faca de madeira menor do que aquela que me envia quando quer me ver. Em poucos minutos, Lali me explicaria que, quando quisesse ver o feiticeiro, de agora em diante, eu deveria lhe mandar essa faca pequena e, se ele concordasse em me receber, me mandaria a grande. Antes de deixá-lo, observei como seu rosto magro e seu pescoço são cheios de rugas. Sua boca tem apenas cinco dentes: três embaixo e dois em cima, na frente. Os olhos, amendoados como os de todos os índios, possuem nas pálpebras tanta pelanca, que, quando elas se fecham, formam duas bolotas. Não tem cílios nem sobrancelhas. Os cabelos são lisos e negros, caídos, aparados na altura dos ombros, com uma franja igual à de todos os demais índios, à altura das sobrancelhas.

Vou-me embora e me desagrada ficar com a bunda de fora. Sinto-me gaiato. Mas, afinal, vai por conta da fuga! É preciso levar os índios a sério e a liberdade compensa alguns inconvenientes. Lali vê o cache-sexe e, rindo, mostra todos os dentes, que aliás são tão bonitos como as pérolas que ela pesca. Examina o bracelete e a outra tanguinha de cobra. Para ver se fui submetido à fumaça, ela me cheira. Os índios, diga-se de passagem, têm o olfato muito desenvolvido.