– Bem, vai acabar imitando o outro.
Esse incidente me tirou da ilha, dos violões, do meio dos hindus de Port-of-Spain, para me trazer de volta à triste realidade da reclusão.
Tenho ainda dez dias, isto é, 240 horas para sofrer.
A tática de não me mexer dá bons resultados, talvez porque os dias sejam tranqüilos, talvez por causa do bilhete dos meus amigos. Creio, contudo, que me sinto mais forte em virtude de uma comparação. Faltam 240 horas para eu me libertar dessa reclusão; estou fraco, mas meu cérebro está intato, minha energia requer apenas um pouco mais de força física para voltar a funcionar com perfeição. No entanto, aqui atrás, a 2 metros, do outro lado da parede, há um prisioneiro que entra na primeira fase da loucura, talvez pela pior porta, que é a da violência. Não vai sobreviver por muito tempo. Sua revolta permitirá que lhe apliquem tratamentos estudados com o maior rigor para matá-lo o mais cientificamente possível. Consigo sentir-me mais forte porque o outro foi derrotado. A sensação faz com que eu me pergunte se não serei um daqueles egoístas que, no inverno, bem agasalhados e bem calçados, vêem passar a massa dos trabalhadores enregelados, mal vestidos, com as mãos azuladas pelo frio da manhã, e, olhando a multidão que corre para pegar o ônibus ou o metrô, ainda usufruem com maior gosto a comodidade e se sentem melhor do que antes. Tudo na vida é, com freqüência, feito de comparações. De fato, estou condenado a dez anos mas Papillon está condenado à prisão perpétua. De fato, estou condenado à prisão perpétua, mas tenho apenas 28 anos, ao passo que ele tem cinqüenta.
Bom, estou chegando ao fim da reclusão e, em menos de seis meses, espero que a saúde, o moral e a energia, em todos os aspectos, me deixem em boa situação para uma fuga espetacular. Falou-se muito da primeira. A segunda há de ficar gravada nas pedras da cadeia. Não tenho dúvida. Antes de seis meses, estou seguro de partir.
Essa é a última noite que passo na reclusão. Há dezessete mil quinhentas e oito horas entrei na cela 234. Uma vez me abriram a porta para me conduzir diante do comandante, a fim de que ele me punisse. Alguns segundos por dia, troquei alguns monossílabos com meu vizinho. Afora isso, me falaram quatro vezes. Uma para me dizer que, ao ouvir o apito, eu devia baixar a cama embutida; foi no primeiro dia. Outra vez, foi o médico: “Vire-se, tussa”. Depois, uma conversa mais longa e mais movimentada com o comandante. Por fim, outro dia, quatro palavras trocadas com o guarda que se emocionara diante do preso enlouquecido. Não é uma diversão excessiva! Durmo tranqüilamente, pensando numa única coisa: amanhã, essa porta vai se abrir definitivamente. Amanhã verei o sol e, se me mandarem para Royale, respirarei o ar marinho. Amanha estarei livre. Começo a dar gargalhadas. Como, livre? Amanhã recomeçarás a tua pena de trabalhos forçados, a tua prisão perpétua. É isso que consideras ser livre? Sei muito bem, mas e uma vida que não se compara àquela que acabei de suportar aqui. Como encontrarei Clousiot e Maturette?
Às 6 horas me dão o café e o pão. Tenho vontade de dizer: “Vocês estão enganados, hoje estou de saída”. Logo me recordo que sou “amnésico” e que, se me desmascarar ante o comandante, ele pode me dar um castigo adicional de trinta dias. De qualquer modo, pela lei, devo sair hoje, 26 de junho de 1936, da reclusão disciplinar de Saint-Joseph. Dentro de quatro meses estarei completando trinta anos.
Oito horas. Comi toda a minha bolota de pão. No caminho certamente me darão de comer. Abre-se a porta. Chegam o subcomandante e dois guardas.
– Charrière, hoje é 26 de junho de 1936, você acabou de cumprir a sua pena. Siga-nos.
Saio. No pátio, o sol é suficientemente brilhante para me tontear. Sinto uma espécie de fraqueza. Minhas pernas amolecem e manchas negras dançam diante dos meus olhos. No entanto, caminhei apenas 50 metros, trinta dos quais ao sol.
Chegando ao prédio da administração, vejo Maturette e Clousiot. Maturette está transformado num verdadeiro esqueleto, com o rosto cavado e os olhos fundos. Clousiot está deitado numa padiola, lívido e já com cheiro de morte. Penso: “Não estão bonitos, os meus amigos. Será que eu também estou nesse estado?” Estou doido para me ver num espelho. Digo-lhes:
– Como é? Estamos firmes?
Não respondem. Repito:
– Estamos firmes?
– Estamos – responde debilmente Maturette.
Sinto o impulso de dizer-lhe que a reclusão terminou, que nós temos o direito de conversar. Beijo o rosto de Clousiot. Ele me olha com dois olhos brilhantes e sorri. Diz:
– Adeus, Papillon.
– Não fale assim!
– Falo, sim. Estou nas últimas.
Alguns dias depois, morreu no hospital de Royale. Tinha 32 anos, fora preso com vinte pelo furto de uma bicicleta que não havia cometido. Chega o comandante:
– Tragam os presos aqui para dentro. Maturette e Clousiot se portaram bem. Vou anotar na ficha de vocês: “Boa conduta”. Você, não, Charrière. Você cometeu uma falta grave. Vou anotar na sua ficha: “Má conduta”.
– Desculpe, comandante, mas qual foi a falta que eu cometi?
– Você não se lembra da descoberta dos cigarros e do coquinho?
– Sinceramente, não.
– Bem, que regime você vem tendo há quatro meses?
– De que ponto de vista? No que se refere à comida? O mesmo de sempre, desde que cheguei aqui.
– Ah, isso é o cúmulo! Que foi que você comeu ontem à noite?
– Não sei. Deram o que costumam dar. Não me lembro. Acho que foi feijão, ou arroz. Ou talvez um legume.
– Mas lhe deram comida ontem à noite? Você comeu?
– Claro que comi! O senhor acha que eu vou desperdiçar comida?
– Não, não é isso. Desisto. Não vou anotar “má conduta”. Guarda, faça uma nova ficha de saída para Charrière. Vou anotar “boa conduta” na sua ficha, está bom?
– Está bom e é justo. Não fiz nada que desmerecesse o meu conceito.
Foi com essa frase que nós saímos do escritório.
A grande porta do conjunto de reclusão se abre para passarmos. Escoltados por um único guarda, descemos lentamente o caminho que leva ao porto. Vemos o mar, com seus reflexos brilhantes e prateados da espuma. Em frente se acha Royale, com o verde da vegetação e o vermelho dos tetos. A Ilha do Diabo, austera e selvagem. Peço licença ao guarda para me sentar por alguns minutos. Ele autoriza. Nós nos sentamos, um à esquerda e outro à direita de Clousiot, e automaticamente, sem nos darmos conta, damo-nos as mãos. Esse contato nos dá uma emoção estranha e, sem nos dizermos nada, beijamo-nos no rosto. O guarda faia:
– Vamos, rapazes. É preciso descer.
E lentamente, bem lentamente, descemos até o porto, nós dois adiante, de mãos dadas, o guarda e os dois enfermeiros que vêm carregando o nosso amigo agonizante.
Assim que entramos no pátio do campo, todos os forçados começam a nos tratar com uma atenção amigável. Reencontro Pierrot le Fou, Jean Sartrou, Colondini, Chissilia. Temos que ir os três para a enfermaria, informa o guarda. Assim, escoltados por uns vinte homens, atravessamos o pátio até a enfermaria. Em alguns minutos, Maturette e eu temos na nossa frente uma dúzia de maços de cigarros e de fumo, café com leite bem quente, chocolate feito com cacau puro. Cada um quer dar alguma coisa para a gente. Clousiot ganha do enfermeiro uma injeção de óleo canforado e uma de adrenalina para o coração. Um preto muito magro diz:
– Enfermeiro, dê as minhas vitaminas para ele, precisa mais do que eu.
É realmente comovedora esta demonstração de bondade solidária para com a gente.
Pierre, o bordelês, diz para mim:
– Você quer gaita? Antes da saída de vocês para Royale, dá tempo para fazer uma vaquinha.
– Não, muito obrigado, tenho dinheiro. Mas como você sabe que eu vou para Royale?
– Foi o contador que disse. Vão os três. Acho até que vão os três para o hospital.