O enfermeiro é um bandido das montanhas da Córsega. Se chama Essari. Depois eu o conheci muito bem, mais tarde contarei toda a história dele, é muito interessante. As duas horas na enfermaria passam muito depressa. Comemos e bebemos bastante. Repletos e satisfeitos, partimos para Royale. Clousiot ficou o tempo todo de olhos fechados, a não ser quando eu me aproximava e botava a mão na testa dele. Então, abria os olhos já mortiços e dizia:
– Amigo Papi, somos verdadeiros amigos.
– Mais do que isso, somos irmãos – respondia eu.
Ainda com um guarda só, descemos. No meio, a maca com Clousiot, Maturette e eu de cada lado. Na porta do campo, todos os forçados se despedem da gente e nos desejam boa sorte. Agradecemos os presentes e não queremos aceitá-los, embora eles não nos ouçam. Pierrot le Fou botou no meu pescoço uma sacola cheia de fumo, cigarros, chocolate e latas de leite Nestlé. Maturette também ganhou uma. Não sabe quem lhe deu. Somente o enfermeiro Fernandez e um guarda nos levam até o cais. Ele entrega a cada um uma ficha para o hospital de Royale. Adivinho que são os forçados enfermeiros Essari e Fernández que, sem pedir nada ao médico, nos hospitalizam. A canoa está aí. Seis remadores, dois guardas atrás armados com mosquetões e mais um no leme. Um dos remadores é Chapar, do caso da Bolsa de Marselha. Bom, vamos. Os remos penetram no mar e, remando, Chapar fala para mim:
– Tudo bem, Papi? Você sempre recebeu o coco?
– Não nos últimos quatro meses.
– Eu sei, houve um acidente. O sujeito foi direito. Ele só conhecia a mim, mas não me entregou.
– O que aconteceu com ele?
– Morreu.
– Não é possível! Morreu de quê?
– Parece, pelo que diz um enfermeiro, que fizeram estourar o fígado dele com um pontapé.
Desembarcamos no cais de Royale, a mais importante das três ilhas. No relógio da padaria são 3 horas. Este sol da tarde é muito forte, me ofusca e me esquenta demais. Um guarda pede dois homens para a maca. Dois forçados, corpulentos, impecavelmente vestidos de branco, cada um com o pulso fortalecido por uma pulseira de couro, levantam Clousiot como se fosse uma pena e nós andamos atrás dele, Maturette e eu, Um guarda, com alguns papéis na mão, anda atrás da gente.
O caminho, de mais de 4 metros de largura, é de cascalho. É difícil de subir. Felizmente, os dois homens param de vez em quando e esperam por nós. Sento no braço da maca, do lado da cabeça de Clousiot e passo levemente a mão na testa dele. Toda vez que faço isso ele sorri, abre os olhos e diz:
– Meu velho Papi!
Maturette pega a mão dele.
– É você, pequenino? – murmura Clousiot.
Ele parece ter uma felicidade inefável ao sentir a gente perto dele. Damos uma parada, quase na chegada, e encontramos uma turma que vai para o trabalho. São quase todos forçados do meu comboio. Todos, na passagem, têm uma palavra amável para a gente. Chegando ao planalto, na frente de um prédio quadrado e branco, vemos, sentados na sombra, as mais altas autoridades das ilhas. Nos aproximamos do comandante Barrot, alcunhado “Coco Seco”, e dos outros chefes da penitenciária. Sem levantar e sem cerimônia, o comandante diz:
– Então, não foi dura demais a reclusão? E aquele na maca, quem é?
– É Clousiot.
Olha para ele e diz:
– Leve todos para o hospital. Quando saírem, bote um aviso para que eles me sejam apresentados antes de entrar no campo.
No hospital, numa grande sala muito bem iluminada, nos botam em camas bem limpas, com lençóis e travesseiros. O primeiro enfermeiro que vejo é Chatal, o enfermeiro da sala de alta vigilância de Saint-Laurent-du-Maroni. Ele toma logo conta de Clousiot e da ordens a um guarda para chamar o médico. Este chega lá pelas 5 horas. Depois de um longo e minucioso exame, vejo que ele balança a cabeça, com ar insatisfeito. Escreve a receita e comenta:
– Não somos bons amigos, Papillon e eu – diz para Chatal.
– Estranho, pois é um bom cara, doutor.
– Talvez, mas ele tem birra comigo.
– Por causa do quê?
– Por causa de uma consulta que tivemos na reclusão.
– Doutor – digo -, o senhor chama isso de consulta, auscultar pelo postigo?
– É ordem da administração: nunca abrir a porta de um condenado.
– Muito bem, doutor, espero que o senhor esteja apenas emprestado a esta administração e que não pertença a ela.
– Falaremos disso mais tarde. Vou tentar fortalecê-los, a você e seu amigo. Quanto ao outro, receio que seja tarde demais.
Chatal me conta que, suspeito de estar preparando uma fuga, ele foi internado nas ilhas. Conta também que Jesus, aquele que me traiu na minha fuga, foi assassinado por um leproso. Ele não sabe o nome do leproso e pergunto para ele se não será um daqueles que nos ajudaram com tamanha generosidade.
A vida dos forçados nas Ilhas da Salvação é completamente diferente do que se pode imaginar. Em sua maioria, os homens são extremamente perigosos, por vários motivos. Primeiro, todo mundo come bem, pois se negocia tudo: álcool, cigarros, café, chocolate, açúcar, carne, verduras frescas, peixe, lagosta, coco, etc. Portanto, todo mundo goza de perfeita saúde, num clima muito sadio. Apenas os condenados temporários têm a esperança de serem libertados, mas os condenados à prisão perpétua – perdido por perdido! – são todos perigosos. Todos estão envolvidos nessas negociatas diárias, forçados e guardas. É uma mistura difícil de entender. Esposas de guardas procuram jovens forçados para trabalhos domésticos – e muitas vezes elas os tomam como amantes. São chamados “moços de serviços”. Alguns são jardineiros, outros cozinheiros. É essa a categoria que serve de ligação entre o campo e as casas de guardas. Os “moços de serviços” não são antipatizados pelos outros forçados, pois é graças a eles que se pode negociar de tudo. Mas eles não são considerados puros. Nenhum homem da autêntica malandragem aceitaria se rebaixar a esses servicinhos. Não concordaria em ser chaveiro, nem em trabalhar no refeitório dos guardas… Por outro lado, os presos pagam caríssimo pelas ocupações nas quais não tenham relação com os guardas: limpadores de latrinas, varredores de folhas secas, condutores de búfalos, enfermeiros, jardineiros da penitenciária, açougueiros, padeiros, remadores, carteiros, guardas do farol. Todos esses empregos são ocupados pelos verdadeiros duros. Um verdadeiro duro nunca trabalha na manutenção dos muros de contorno das estradas, das escadas, nem planta coqueiros; quer dizer, nunca trabalha nas tarefas ao sol ou sob a vigilância dos guardas. A gente trabalha das 7 horas ao meio-dia e das 2 às 6. Isso dá uma idéia do ambiente criado pela mistura de pessoas tão diferentes que vivem juntas, forçados e guardas, verdadeira aldeia em que se comenta tudo, se julga tudo, em que todo mundo observa a vida dos outros.
Dega e Galgani vieram passar o domingo comigo no hospital. Comemos maionese com peixe, sopa de peixe, batatas, queijo, café, vinho branco. Esta refeição, nós a fizemos no quarto de Chatal, ele, Dega, Galgani, Maturette, Grandet e eu. Pediram-me que conte toda a minha fuga, nos menores detalhes. Dega não vai tentar mais nada para fugir. Aguarda da França uma redução de cinco anos em sua pena. Com os três que ele já fez na França e mais três aqui, só faltará cumprir quatro. Se resignou a cumpri-los. Quanto a Galgani, acha que um senador corso está cuidando do caso dele.
Quando chega a minha vez, pergunto quais os lugares mais propícios, aqui, para uma fuga. É um espanto geral. Para Dega, é uma idéia que nem lhe passou pela cabeça; Galgani também não pensa nisso. Por sua vez, Chatal acha que um jardim deve ter suas vantagens para preparar uma jangada. Quanto a Grandet, ele me informa que é ferreiro numa oficina onde, pelo que está dizendo, há de tudo: pintores, carpinteiros, ferreiros, pedreiros, encanadores – 120 homens. Ele trabalha na manutenção dos prédios da administração. Dega, que é contador geral, me ajudará a obter o lugar que eu quiser. Será só escolher. Grandet me oferece a metade do seu cargo de controlador de jogo, de modo que, com o que eu ganhar sobre os jogadores, poderei viver bem sem gastar o dinheiro do meu canudo. Mais tarde, vou ver que o negócio é muito interessante, mas extremamente perigoso.