É assim, com duas calças de um branco impecável, novinhas, e três japonas, um chapéu de palha de arroz, que me encaminho, acompanhado por um guarda, para o campo central. Para ir do pequeno prédio da administração até o campo, é necessário atravessar o planalto inteiro. Passamos em frente do hospital dos guardas, ao seguir um muro de 4 metros que faz a volta completa da penitenciária. Depois de ter feito a volta quase completa desse imenso retângulo, se chega à porta principal. “Penitenciária das Ilhas – Seção de Royale”. A imensa porta de madeira é toda aberta. Tem cerca de 6 metros de altura, com dois postos de guarda e quatro guardas em cada um. Sentado numa cadeira, um graduado. Nada de mosquetão: todos estão com revólver. Vejo também cinco ou seis serventes árabes.
Quando chego debaixo do pórtico, todos os guardas saem. O chefe, um corso, diz:
– Chegou um novo, de gabarito.
Os serventes se preparam para me revistar, mas ele os interrompe:
– Não chateiem, não precisam tirar a tralha toda. Vamos, entre, Papillon. No bloco especial, parece que você tem muitos amigos. Eles estão esperando por você. Meu nome é Sofrano. Boa sorte nas ilhas.
– Obrigado, chefe.
E entro num pátio imenso, onde se erguem três grandes blocos. Sigo o guarda que me leva até um deles. Em cima da porta, uma inscrição: “Bloco A – Grupo Especial”. Em frente da porta toda aberta, o guarda grita:
– Vigia do compartimento!
Surge então um velho forçado.
– Chegou um novo – diz o chefe e vai embora.
Entro numa sala retangular, muito grande, onde vivem 120 homens. Como no primeiro prédio de Saint-Laurent, uma barra de ferro percorre cada um dos lados maiores, interrompida apenas no espaço das portas; é uma grade que só se fecha de noite. Entre a parede e a barra estão esticadas, muito bem estendidas, lonas que servem de cama e às quais se dá o nome de rede, embora não sejam realmente redes. Essas redes são bem confortáveis e higiênicas. Em cima de cada uma estão afixadas duas tábuas para nós guardarmos nossas coisas: uma para a roupa, a outra para a comida, a tigela, etc. Entre as fileiras de redes, uma passagem de 3 metros de largura, a “avenida”. Aqui, também, os homens vivem em pequenas organizações, as patotas. Há patotas de dois homens, mas também de dez.
Assim que chegamos, de todos os lados chegam forçados vestidos de branco: “Papi, venha para cá”. “Não, venha com a gente.” Grandet pega a minha sacola e diz:
– Ele vai ficar de patota comigo.
Vou seguindo Grandet. Instalam a lona, bem esticada, que me servirá de cama.
– Tome um travesseiro de penas, meu chapa – diz Grandet.
Reencontro uma porção de amigos. Muitos corsos e marselheses, alguns parisienses, todos amigos da França ou sujeitos encontrados na Santé, na Conciergerie ou no comboio. Mas, espantado por encontrá-los aqui, pergunto:
– Vocês não estão trabalhando numa hora dessas?
Aí é uma gargalhada geral.
– Ah! essa é boa! Neste prédio, quem trabalha não trabalha mais de uma hora por dia. Depois, a gente volta logo para cá.
Esta recepção é realmente calorosa. É de se desejar que continue assim. Mas logo entendo alguma coisa que não tinha previsto: apesar dos dias passados no hospital, preciso aprender de novo a viver numa comunidade.
Vejo algo que eu nunca teria imaginado. Um sujeito entra, vestido de branco, com uma bandeja encoberta por um pano branco limpíssimo e grita:
– Bife, bife, quem quer bife?
Pouco a pouco vem se aproximando da gente, pára, levanta o pano branco e aparece, como num açougue da França, uma bandeja cheia de bifes cuidadosamente empilhados. Percebo que Grandet é freguês constante, pois o rapaz nem pergunta se ele quer bifes, pergunta apenas quantos quer que deixe.
– Cinco.
– Contrafilé ou alcatra?
– Contrafilé. Quanto é? Me dê as contas, porque agora temos um a mais, então vai mudar.
O comerciante de bifes puxa uma caderneta e começa a calcular:
– Dá 135 francos, tudo incluído.
– Cobre e agora recomeçamos de zero.
Depois de o homem ter ido embora, Grandet me diz:
– Aqui, sem tutu você se arrebenta. Mas tem um sistema para ter sempre tutu: a viração.
Para os duros, a viração é o modo de cada um se virar para conseguir dinheiro. O cozinheiro do campo vende bifes feitos com a própria carne destinada aos prisioneiros. Quando ele recebe a carne na cozinha tira mais ou menos a metade. Conforme os pedaços, prepara bifes, carne para ensopado ou para cozinhar. Uma parte é vendida aos guardas, através das esposas, a outra aos forçados que têm meios para comprar. Claro que o cozinheiro dá uma parte do que ganha ao guarda encarregado da cozinha. O primeiro prédio onde se apresenta com a mercadoria é sempre o do grupo especial, bloco A: o nosso.
Então, a viração é o cozinheiro que vende a carne e a gordura; o padeiro que vende pão fino ou pão de metro bem branco, destinado aos guardas; o açougueiro que, por sua vez, vende carne; o enfermeiro que vende injeções; o contador que recebe dinheiro para fazer com que a gente seja designado para tal ou tal cargo, ou então simplesmente para nos dispensar de uma tarefa; o jardineiro que vende hortaliças frescas e frutas; o forçado empregado no laboratório que vende resultados de análises e chega até a inventar tuberculosos, leprosos, enterites, etc; os especialistas do roubo no pátio das casas dos guardas, que vendem ovos, frangos; os moços de serviços que negociam com a dona da casa onde trabalham, e que trazem o que a gente pedir: manteiga, leite condensado, leite em pó, latas de atum ou de sardinha, queijos e, naturalmente, vinhos e bebidas alcoólicas (tanto assim, que na minha patota tem sempre uma garrafa de Ricard e cigarros ingleses ou americanos); aqueles também que têm o direito de pescar e vendem o peixe ou as lagostas.
Mas a melhor viração, a mais perigosa também, é ser controlador de jogo. A regra é que não pode nunca haver mais de três ou quatro controladores de jogo por prédio de 120 homens. Aquele que quiser cuidar dos jogos se apresenta de noite e diz: “Quero um lugar como controlador do jogo”. Alguém responde: “Não”.
– Todos dizem não?
– Todos.
– Então escolho fulano para tomar o lugar.
Aquele que foi designado entendeu. Levanta-se, vai até o centro da sala e os dois fazem um duelo de faca. Aquele que ganha fica com o lugar. Os controladores cobram 5 por cento em cada lance vitorioso.
Os jogos servem também para outras pequenas virações. Há aquele que prepara os cobertores bem esticados no chão, aquele que aluga bancos pequeninos para os jogadores que não podem sentar com as pernas cruzadas debaixo do traseiro, o vendedor de cigarros. Este coloca em cima do cobertor várias caixas de charutos vazias, nas quais ele põe cigarros franceses, ingleses, americanos e até feitos a mão. Cada um tem um preço, o jogador se serve ele mesmo e coloca cautelosamente na caixa o dinheiro correspondente ao preço marcado. Há também aquele que prepara os lampiões de querosene e toma cuidado para que eles não façam fumaça demais. São lampiões feitos com latas de leite cuja tampa foi furada para deixar passar um pavio que mergulha no querosene e que deve ser aparado com freqüência. Para os que não fumam, há bombons e bolos feitos com viração especial. Cada prédio tem um ou dois cafeteiros. O café feito à moda árabe é mantido quente a noite inteira, com dois sacos de estopa que o cobrem. De vez em quando, o cafeteiro passa pela sala e oferece café ou chocolate quente numa espécie de bule norueguês de fabricação caseira.
Finalmente, há as bugigangas. É uma espécie de viração artesanal. Alguns trabalham com a casca das tartarugas capturadas pelos pescadores. Uma tartaruga de escama possui treze chapas, cada uma com até 2 quilos. Com isso, o artista faz pulseiras, brincos, colares, piteiras, pentes e ornamentos para escovas. Cheguei a ver uma caixinha de escama clara, verdadeira maravilha. Outros trabalham com cocos, chifres de boi, de búfalo, ébano ou outras madeiras das ilhas. Alguns fazem trabalhos de marcenaria de alta precisão, sem um prego, tudo com uma chanfradura. Os mais hábeis trabalham com bronze. Sem esquecer os pintores.