Pode acontecer que vários destes talentos se juntem para realizar um só objeto. Por exemplo, um pescador pega um tubarão. Ele ajeita as mandíbulas de modo a que fiquem abertas, com os dentes bem polidos e bem retos. Um marceneiro faz o modelo reduzido de uma âncora, de madeira bem lisa e de grão fechado, suficientemente larga para que se possa fazer alguma pintura no centro. As mandíbulas são fixadas nesta âncora, em que um pintor pinta as Ilhas da Salvação cercadas pelo mar. O tema mais freqüentemente usado é o seguinte: se vê a ponta da Ilha Royale, o canal e a Ilha Saint-Joseph. No mar azul, o sol declinando lança raios fulgurantes. Na água, um barco com seis forçados em pé, peito nu, os remos verticais, e três guardas atrás, de metralhadoras na mão. Na frente, dois homens erguem um caixão donde escorrega, embrulhado num saco de farinha, o corpo de um forçado morto. Tubarões aparecem na superfície da água, esperando o corpo com a goela aberta. Embaixo, à direita do quadro, está escrito: “Enterro em Royale” com a data.
Estes trabalhos de artesanato são vendidos nas casas dos guardas. As peças mais belas são freqüentemente compradas com antecipação ou feitas a pedido. O resto é vendido a bordo dos navios que passam pelas ilhas. É o domínio dos remadores. Há também os brincalhões que pegam uma velha caneca esburacada e gravam nela: “Esta caneca pertenceu a Dreyfus – Ilha do Diabo – data”. A mesma coisa com as Colheres e as tigelas. Para os marinheiros bretões, há um truque que funciona na certa: qualquer coisa com o nome de “Sezenec”.
Esse negócio permanente traz muito dinheiro para as ilhas e os guardas têm interesse em tolerá-lo. Entregues aos seus afazeres, os homens são mais fáceis de manejar e se acostumam à nova vida.
A pederastia toma um caráter oficial. Todo mundo (inclusive o comandante) sabe que fulano é a mulher de sicrano e, quando um deles é mandado para outra ilha, providencia-se para que o outro siga logo, se é que já não foram transferidos juntos.
Entre todos estes homens, não chegam a trezentos os que pensam em fugir. Até entre os que têm condenação à prisão perpétua. O único esforço é no sentido de tentar, por todos os meios, ser desinternado e mandado para o continente, para Saint-Laurent, Kourou ou Caiena. O que só interessa aos internados temporários. Para os condenados à prisão perpétua, não há saída fora do assassinato. De fato, quando se mata alguém, eles mandam a gente a Saint-Laurent para ser julgado pelo tribunal. Mas com esse recurso para ir para lá – é necessário esclarecer -, a gente se arrisca a pegar cinco anos de reclusão disciplinar por assassinato, sem saber se se poderá aproveitar a breve permanência no quartel de Saint-Laurent (três meses no máximo) para fugir.
Pode-se tentar também o desinternamento por motivos de saúde. Quem é declarado tuberculoso é mandado ao campo para tuberculosos, chamado Novo Campo, a 80 quilômetros de Saint-Laurent.
Existem também a lepra e a enterite crônica. É relativamente fácil chegar a este resultado, mas o risco é muito grande: a coabitação num pavilhão especial, isolado, durante quase dois anos, com os doentes do tipo escolhido. De querer ser falso leproso a pegar a lepra, de ter pulmões fortes pra burro e sair tuberculoso, vai só um pequeno passo, que se dá com freqüência. Quanto à disenteria, é ainda mais difícil escapar ao contágio.
Aqui estou eu, instalado no bloco A, com os meus 120 colegas. É necessário aprender a viver nesta comunidade na qual a gente é rapidamente classificado. É necessário primeiro que todo mundo saiba que é perigoso atacar você. Uma vez temido, tem que se fazer respeitar pela maneira como se comporta em relação aos guardas, não aceitar determinados cargos, recusar certas tarefas, nunca reconhecer a autoridade dos serventes, nunca obedecer com humildade, mesmo correndo o risco de ter um incidente com o guarda. Depois de ter jogado a noite inteira, não se deve atender à chamada. O guarda da choça (este bloco é chamado “a choça”) grita:
– Doente, deitado.
Nas duas outras choças, os guardas vão às vezes procurar o doente e o obrigam a assistir à chamada. Nunca no bloco dos violentos. Conclusão: o que eles procuram antes de mais nada, do maior ao menor, é a tranqüilidade da prisão.
Meu amigo Grandet, com quem estou associado e reparto as coisas, é um marselhês de 35 anos. Muito alto, magro como um prego, mas muito forte. Somos amigos desde a França. A gente se dava em Toulon, bem como em Marselha e Paris.
É um célebre perfurador de cofres-fortes. É bom, mas pode ser muito perigoso. Hoje estou quase sozinho nesta imensa sala. O chefe da choça varre e passa um pano no chão de cimento. Estou vendo um homem consertando um relógio, com um troço de madeira no olho esquerdo. Em cima da sua rede, uma tábua onde estão dependurados uns trinta relógios. Este rapaz tem os traços de um homem de trinta anos e cabelos inteiramente brancos. Aproximo-me dele e o observo trabalhar, depois tento bater um papo. Nem levanta a cabeça e permanece mudo. Afasto-me um pouco, ofendido, saio para o pátio e me sento perto do tanque. Encontro Titi la Belote, que está treinando com um baralho completamente novo. Seus dedos ágeis baralham constantemente as 52 cartas com uma rapidez incrível. Sem interromper o jogo de suas mãos de prestidigitador. diz:
– Então, velho, tudo bem? Está se dando bem em Royale?
– Sim, mas hoje estou na fossa. Preciso trabalhar um pouco; resolvi sair um pouco da choça. Quis bater um papo com o sujeito que está dando uma de relojoeiro, ele nem abriu a boca.
“Não se incomode, Papi, este sujeito não liga para ninguém. Para ele, só existem os relógios. Para o resto, bolas! É verdade que, depois do que aconteceu para ele, tem o direito de ser gira. Até por menos. Imagine que este rapaz – pode-se dizer que ele é um rapaz, não tem ainda trinta anos – era condenado à morte, no ano passado, porque ele teria estuprado a mulher de um guarda. Lorota! Fazia tempo que ele trepava com a dona, a esposa de um guarda-chefe bretão. Como ele trabalhava na casa deles como moço de serviços, cada vez que o bretão tinha plantão de dia, o relojoeiro comia a garota. Só que eles cometeram um erro: a dona nem o deixava mais lavar e passar a roupa. Era ela mesma que fazia tudo, e o cornudo do marido achou estranho, começou a desconfiar, porque sabia que ela era preguiçosa. Mas não tinha prova de seu infortúnio. Então bolou alguma coisa para pegar os dois em flagrante e matá-los. Ele não contava com a reação da dona. Um dia, ele deixa o plantão duas horas depois de ter começado e pede a um guarda para acompanhá-lo até em casa, alegando que queria lhe dar um presunto que tinha recebido de sua terra. Sem barulho, passa pelo portão; mas, assim que abre a porta da casinha, um papagaio se põe a berrar: ‘Chegou o patrão!’, como costumava fazer toda vez que o cara voltava para casa. Logo a mulher se põe a gritar: ‘Socorro! É uma curra!’ Os dois guardas entram no quarto na hora em que a mulher escapa dos braços do forçado que, surpreendido, pula pela janela, enquanto o cornudo atira nele. Levou um tiro no ombro; a dona, por sua vez, arranhou ela mesma os peitos e a face e rasgou o chambre. O relojoeiro caiu, ferido, e, na hora em que o bretão ia acabar com ele, o outro guarda lhe tirou a arma. É verdade que o outro era um corso e entendeu logo que o chefe lhe tinha contado uma lorota, estupro ali era chifre em cabeça de cavalo. Mas o corso não podia falar com o bretão e fingiu que acreditava no estupro. O relojoeiro foi condenado à morte. Até aí, meu velho, nada de extraordinário. É depois que o caso se torna interessante.