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– No ano passado, quase fugi, mas a coisa gorou. Tinha certeza de que você não era daqueles que ficam quietos aqui. Só que falar em fuga nas ilhas é o mesmo que falar hebreu. Por outro lado, acho que você não entendeu ainda os forçados das ilhas. Tais como você os está vendo, 90 por cento se acham relativamente felizes. Se o cara mata alguém, nunca tem uma testemunha; se rouba, a mesma coisa. Qualquer coisa que um sujeito faça, todos se solidarizam para defendê-lo. Os forçados das ilhas têm medo de uma única coisa: que uma fuga dê certo. Porque, aí, sua relativa tranqüilidade fica abalada: investigações constantes, nada de baralho, nada de música – os instrumentos são quebrados nas investigações -, nada de jogo de xadrez e de damas, nada de livros, quer dizer, mais nada! Nada de artesanato, também. Tudo, absolutamente tudo é suprimido. Revistam sem parar. Açúcar, óleo, bife, manteiga, tudo isso desaparece. Os que conseguiram fugir das ilhas sempre foram presos no continente, perto de Kourou. Mas, para as ilhas, a fuga deu certo: os sujeitos puderam sair da ilha onde estavam. De modo que vêm sanções contra os guardas, que se vingam em cima de todo mundo.

Estou ouvindo com a máxima atenção. Nem estou acreditando. Nunca eu tinha pensado no assunto por esse lado.

– Conclusão – diz Castelli -, no dia em que você quiser preparar uma fuga, tome todas as precauções. Antes de conversar com qualquer cara, se não for um amigo íntimo, pense dez vezes.

Jean Castelli, assaltante profissional, é de uma vontade e de urna inteligência fora do comum. Ele detesta a violência. A alcunha dele é “O Antigo”. Por exemplo, ele só se lava com sabão e, se eu me lavei com Palmolive, ele me diz:

– Mas que cheiro de viado, seu! Você se lavou com sabão de mulher!

Infelizmente, ele já tem 52 anos, mas dá prazer ver sua energia de ferro. Ele me diz:

– Você, Papillon, parece que é meu filho. A vida das ilhas não lhe interessa. Você come bem porque é necessário se manter em boa forma, mas nunca vai se acostumar a viver nas ilhas. Parabéns. Entre todos os forçados, somos apenas uma meia dúzia os que pensam assim. Há, é verdade, uma quantidade de homens que pagam fortunas para serem desinternados e poder ir para o continente, pensando em fugir. Mas, aqui, ninguém acredita na fuga.

O velho Castelli me dá conselhos: aprender inglês e, sempre que puder, falar castelhano com um cara que fale essa língua. Ele me emprestou um livro para aprender o castelhano em 24 lições. Um dicionário francês-inglês. Ele é amigo de um marselhês, Gardès, que entende de tudo a respeito de fugas. Já fugiu duas vezes. A primeira, de uma prisão especial portuguesa; a segunda, da Terra Grande. Ele tem sua opinião a respeito da fuga das ilhas; Jean Castelli, também. Gravon, o cara de Toulon, vê também as coisas ao modo dele. Nenhuma dessas opiniões estão de acordo. A partir de agora, tomo a decisão de estudar a situação por mim mesmo e de não falar mais em fuga.

É duro, mas é assim. O único ponto sobre o qual eles concordam é que o jogo só interessa para ganhar dinheiro e que ele é muito perigoso. A qualquer momento, a gente pode ter que entrar numa rixa de faca com o primeiro valentão que encontrar na esquina. Os três são homens de ação e são realmente formidáveis, para a idade que têm: Louis Gravon está com 45 anos e Gardès com quase cinqüenta.

Ontem à noite, tive a oportunidade de mostrar a quase toda a nossa sala a minha maneira de ver as coisas e de agir. Um nanico de Toulouse é desafiado à faca por um cara de Nimes. O sujeito pequeno de Toulouse é alcunhado Sardinha e o corpulento de Nimes, Carneiro. Carneiro está no meio da passagem, de faca na mão:

– Ou você me paga 25 francos por partida de pôquer ou você não joga.

Sardinha responde:

– Nunca se pagou a ninguém para jogar pôquer. Por que é que você vem contra mim e não vai contra os controladores de jogo à marselhesa?

– Não tem que saber por quê. Ou você paga, ou você não joga. Ou então briga.

– Não, não vou brigar.

– Está com medo?

– Estou. Por que vou me arriscar a levar uma facada ou até morrer por causa de um valentão da sua espécie, que nunca tentou fugir? Eu sou um homem de fuga, e não estou aqui para matar nem para me deixar matar.

Todos estamos na expectativa do que vai acontecer. Grandet me diz:

– É verdade que é corajoso, o pequeno, e é um homem de fuga. Pena que não se possa dizer nada.

Abro minha faca e boto debaixo da perna. Estou sentado na rede de Grandet.

– Então, medroso, você vai pagar ou parar de jogar? Responda!

Ele dá um passo na direção do Sardinha. Aí eu grito:

– Feche a matraca, Carneiro, e deixe esse sujeito em paz!

– Você está louco, Papillon? – me diz Grandet.

Sem me mexer, sempre sentado com a faca aberta debaixo da perna, a mão no cabo, digo:

– Não, não estou louco e prestem todos atenção ao que eu vou dizer. Carneiro, antes de lutar com você, o que vou fazer se você exigir, mesmo depois de eu ter falado, deixe que eu diga a você e a todos que, desde que eu cheguei a esta choça, onde somos mais de cem, todos da zona, eu me dei conta com vergonha de que a coisa mais bela, mais honrada, a única verdadeira – a fuga – não é respeitada. Qualquer homem que mostrou que é um homem de fuga, que ele tem peito para jogar a sua vida numa fuga, deve ser respeitado por todos acima de qualquer outra coisa. Quem é que diz o contrário? (Silêncio.) Em todas as leis de vocês, falta uma, fundamentaclass="underline" obrigação para todo mundo, não só de respeitar, mas também de ajudar, de amparar os homens de fuga. Ninguém está obrigado a ir embora e aceito que quase todos vocês tenham decidido ajeitar a sua vida aqui. Mas, se vocês não tiverem a coragem de tentar viver novamente, respeitem pelo menos os que o merecem, os homens de fuga. E, aquele que esquecer esta lei de homem, que espere graves conseqüências. Agora, Carneiro, se você ainda quiser brigar, vamos!

E pulo no meio da sala, de faca na mão. Carneiro joga a sua faca para o lado e diz:

– Você está certo, Papillon, por isso não quero brigar de faca com você, mas vamos sair na mão, para você saber que não sou um covarde.

Deixo minha faca com Grandet. Brigamos durante quase vinte minutos. No fim, com uma cabeçada bem acertada, ganho por pouco. Juntos, nas privadas, lavamos o sangue que pinga das nossas caras. Carneiro diz:

– É verdade que o pessoal se embrutece nestas ilhas. Faz quinze anos que estou aqui e não cheguei a gastar 1 000 francos para tentar ser desinternado. É uma vergonha.

Quando volto para junto dos amigos, Grandet e Galgani me xingam.

– É uma loucura provocar e insultar todo o pessoal, como você fez! Não sei por que cargas d’água ninguém pulou na passagem para pegar na faca contra você.

– Não, meus amigos, não é de espantar. Qualquer homem do nosso meio, quando vê que alguém está realmente certo, concorda com ele.

– Bom – diz Galgani. – Mas, sabe, é melhor não brincar demais com este vulcão.

A noite toda, homens vieram falar comigo. Aproximam-se de mim como por acaso, falam de qualquer coisa e antes de se retirar dizem:

– Estou de acordo com o que você disse, Papi.

Este incidente fortaleceu a minha situação junto aos homens.

A partir de então, os meus colegas me consideram provavelmente como um homem do meio deles, mas me vêem como uma pessoa que não se dobra diante das coisas sem analisá-las e discuti-las. Me dou conta de que, quando sou eu o controlador dos jogos, há menos brigas. E percebo que, quando dou uma ordem, obedecem logo.

O controlador do jogo, como já disse, retira 5 por cento em cada lance vitorioso. Fica sentado num banco, encostado na parede, para se proteger contra um assassino sempre possível. Um cobertor nos joelhos esconde uma faca aberta. Em volta dele, em círculo, trinta, quarenta e às vezes até cinqüenta jogadores de todas as regiões da França, muitos estrangeiros, inclusive árabes. O jogo é muito fáciclass="underline" há o banqueiro e o cortador. Toda vez que o banqueiro perde, ele passa as cartas para o vizinho. Joga-se com 52 cartas. O cortador divide o maço e guarda uma carta escondida. O banqueiro tira uma carta e descobre. Aí fazem as apostas. Joga-se tanto para o corte, como para a banca. Quando as apostas são depositadas em montinhos, começa-se a tirar as cartas uma por uma. A carta que tem o mesmo valor que uma das duas em cima da mesa perde. Por exemplo, o cortador escondeu uma dama e o banqueiro tira um cinco. Se sair uma dama antes de um ‘5, o corte perde. Se for o contrário e sair um 5, é a banca que perde. O controlador do jogo deve conhecer a importância de cada aposta e lembrar-se de quem é cortador ou banqueiro, para saber para quem vai o dinheiro. Nada fácil. £ necessário defender os fracos contra os fortes, que estão sempre tentando abusar do prestígio. Quando o controlador de jogos toma uma decisão a respeito de um caso duvidoso, essa decisão tem que ser aceita sem piscar.