– É verdade que não dá para fugir das ilhas, mas é melhor estar aqui, num clima sadio, do que apodrecer como um bicho na prisão da Terra Grande.
Foi ela quem me explicou a origem do nome das ilhas: numa epidemia de febre amarela em Caiena, alguns padres e as freiras de um convento se refugiaram nas ilhas e todos se salvaram. Daí veio o nome de Ilhas da Salvação.
Graças à pesca, vou para qualquer lugar. Já faz três meses que sou limpador de latrinas è conheço a ilha melhor do que ninguém. Vou observar os jardins, a pretexto de oferecer meu peixe em troca de verduras e frutas. O jardineiro de um jardim localizado perto do cemitério dos guardas é Matthieu Carbonieri, que faz parte da minha patota. Ele trabalha sozinho e pensei que, mais tarde, a gente poderia enterrar ou preparar uma jangada no jardim dele. Mais dois meses e o comandante irá embora. Aí vou poder agir livremente.
Estou organizado: limpador titular das latrinas, saio como se fosse Para fazer a limpeza, mas quem faz no meu lugar é o cara das Antilhas, mediante dinheiro, é claro. Travei relações de amizade com dois cunhados condenados à prisão perpétua, Narric e Quenier. São chamados “os cunhados do carrinho”. Contam que foram acusados de ter transformado em bloco de cimento um cobrador que tinham assassinado. Testemunhas teriam visto eles transportarem num carrinho de mão um bloco de cimento que teriam jogado no Marne ou no Sena. O inquérito estabeleceu que o cobrador foi até a casa deles para receber uma duplicata e, depois, ninguém mais o viu. Eles negaram a vida toda. Até na prisão, eles se diziam inocentes. Embora o corpo nunca tenha sido encontrado, foi achada a cabeça embrulhada num lenço. E na casa deles havia lenços do mesmo tecido e da mesma linha, “conforme os peritos”. Mas os advogados e eles mesmos provaram que foram feitos lenços com milhares de metros dessa fazenda. Todo mundo tinha lenços iguais àquele. Finalmente, os dois cunhados pegaram a prisão perpétua e a mulher de um dos dois, irmã do outro, pegou vinte anos de reclusão.
Consegui travar relações com eles. Já que são pedreiros, eles têm entrada e saída livres na oficina de trabalho. Eles poderiam talvez, peça por peça, tirar o necessário para fazer uma jangada. Agora tenho que convencê-los.
Ontem me encontrei com o médico. Levava um peixe de pelo menos 20 quilos, de carne delicada, chamado cherna. Ele e eu caminhamos na direção do planalto. Na metade do caminho, sentamos num murinho. Ele me diz que com a cabeça desse peixe se faz uma sopa deliciosa. Ofereço-lhe a cabeça, com um grande pedaço de carne. Fica espantado com meu gesto e diz:
– Você não guarda ressentimento, Papillon.
– Quer dizer, doutor, este gesto meu, confesso que não o faço por mim. Sou grato ao senhor porque fez o possível para o meu amigo Clousiot.
A gente conversa um pouco e ele me diz:
– Bem que você gostaria de fugir, não é? Você não é um forçado. Parece que você é outra coisa.
– O senhor tem razão, doutor, não pertenço aos trabalhos forçados, estou aqui apenas de passagem.
Começa a rir. Aí ataco:
– Doutor, o senhor acredita que um homem possa se regenerar?
– Acredito.
– O senhor admitiria a idéia de que eu possa viver na sociedade, sem ser um perigo para ela, e me transformar em cidadão honesto?
– Acredito sinceramente que sim.
– Então, por que o senhor não me ajudaria para chegar a isso?
– Como?
– Fazendo com que eu seja mandado ao continente como tuberculoso.
Ele confirma, então, alguma coisa de que eu já tinha ouvido falar:
– Não é possível e lhe aconselho a nunca fazer isso. É perigoso demais. A administração só desinterna um homem por doença depois de ele ter ficado pelo menos um ano no pavilhão correspondente à doença.
– Por quê?
– É um pouco vergonhoso dizer isso, mas penso que é para que o sujeito em questão, se for um simulador, saiba que ele tem toda a probabilidade de ser contaminado pela coabitação com os outros doentes e que ele adoeça mesmo. Portanto, nada posso fazer por você.
Desse dia em diante, ficamos bastante camaradas, o curandeiro e eu. Até o dia em que o meu amigo Carbonieri quase foi morto por causa dele. De fato, Matthieu Carbonieri, de comum acordo comigo, tinha aceito ser cozinheiro dos guardas-chefes. Era para ver se dava para roubar três barris de vinho, óleo ou vinagre e achar um meio de amarrá-los e sair para o mar. Isso, claro, depois da saída de Barrot. As dificuldades eram muitas, pois era necessário, na mesma noite, roubar os barris, transportá-los até o mar sem que ninguém nos visse nem ouvisse, e juntá-los com cabos. O que só seria possível numa noite de tempestade, com vento e chuva. Mas, com vento e chuva, o mais difícil seria botar essa jangada no mar, que forçosamente estaria muito agitado.
Carbonieri é agora cozinheiro. O chefe do refeitório dos guardas lhe dá três coelhos para preparar para o dia seguinte, um domingo. Carbonieri manda, sem a pele felizmente, um coelho para o irmão, no cais, e dois para a gente. E então ele mata três grandes gatos e faz um guisado fantástico.
Infelizmente para ele, no dia seguinte, o médico é convidado para comer e, saboreando o coelho, diz:
– Senhor Filidori, dou-lhe os parabéns pelo cardápio, este gato é uma delícia.
– Não brinque comigo, doutor, estamos comendo três ótimos coelhos.
– Não – diz o médico, teimoso como uma mula. – São gatos. Está vendo as costelas que estou comendo? Elas são achatadas e as dos coelhos são redondas. Portanto, não há erro possíveclass="underline" estamos comendo gato.
– Virgem, mãe de Cristo! – diz o corso. – Estou com um gato na barriga.
E saí correndo para a cozinha, bota o revólver na cara de Matthieu e diz:
– Por mais que você seja napoleonista como eu, eu vou te matar porque você me fez comer um gato.
Tinha o olhar de um louco e Carbonieri, sem saber como a coisa viera à tona, responde:
– Se o senhor acha que aquilo que me deu é gato, não é culpa minha.
– Eu lhe dei coelhos.
– Então foram coelhos que eu cozinhei. Olhe, as peles e as cabeças ainda estão aqui.
Perplexo, o guarda olha para as peles e as cabeças dos coelhos.
– Então o médico não sabe o que diz?
– É o médico que está dizendo isso? – pergunta Carbonieri, aliviado. – Ele está brincando com o senhor. Diga que isso não é brincadeira que se faça.
Acalmado, convencido, Filidori volta para a sala de jantar e diz ao médico:
– Pode falar, pode falar quanto quiser, curandeiro. É o vinho que lhe subiu à cabeça. Achatadas ou redondas as suas costelas, eu sei que foi coelho que eu comi. Acabo de ver os três ternos deles e as três cabeças.
Matthieu tinha escapado por pouco. Mas ele achou melhor se demitir do cargo de cozinheiro alguns dias mais tarde.
Aproxima-se o dia em que vou poder agir. Mais algumas semanas e Barrot irá embora. Ontem fui visitar sua gorda esposa, que, diga-se de passagem, emagreceu muito graças ao regime de peixe cozido e verduras frescas. Essa mulher simpática me convida para entrar na casa dela e me oferece uma garrafa de vermute. Na sala há várias malas que estão arrumando. Estão preparando a viagem. A comandanta, como todo mundo a chama, me diz:
– Papillon, não sei como agradecer a sua gentileza comigo nesses últimos meses. Eu sei que, em alguns dias de pesca fraca, você me deu tudo o que conseguiu pescar. Agradeço muito. Graças a você, estou me sentindo muito melhor, emagreci 14 quilos. O que poderia fazer para retribuir?
– Uma coisa difícil para a senhora. Me conseguir uma boa bússola. Pequena, mas de precisão.