Uma manhã, depois de ter feito uma boa pesca, bem cedo, e de ter apanhado uns sessenta lagostins, passo pela casa dela às 10 horas. Encontro-a sentada, com um roupão branco, e uma outra moça enrolando o cabelo dela. Cumprimento-a e ofereço-lhe uma dúzia de lagostins.
– Não – diz ela -, me dê todos. Quantos você tem?
– Sessenta.
– Ótimo, ponha-os ali, por favor. Quantos peixes você precisa guardar para você e os seus amigos?
– Oito.
– Então pegue os seus oito e dê o resto ao rapaz, que ele vai colocá-los em lugar fresco.
Fico sem saber o que dizer. O jeito como ela me tratou foi de uma intimidade que nunca tivera antes, e ainda por cima na frente de outra mulher, que sem dúvida irá correndo comentar isso por aí. Viro-me para ir embora, sentindo um forte encabulamento, mas ela diz:
– Fique aqui à vontade, sente-se e tome um pouco de licor. Você deve estar com calor.
Essa mulher autoritária me deixa tão sem jeito, que sento e fico. Saboreio devagar o licor, fumando um cigarro e observando a outra jovem que penteia a comandanta e que de vez em quando dá uma olhada para mim. A comandanta, que está com um espelho na mão, percebe isso e diz à outra:
– É bonitão, este meu xodó, hem, Simone? Vocês estão todas com ciúmes de mim, é ou não é?
E ambas começam a rir. Eu fico que não sei onde me esconder. Como um bobo, digo:
– Felizmente o seu xodó, como a senhora diz, não tem nada de perigoso e, na situação em que está, não pode ter xodó por ninguém.
– Não venha me dizer que você não tem um xodó por mim – diz a argelina. – Ninguém conseguiu domar um leão como você, mas eu faço o que quero com você. Não pode ser sem motivo, hem, Simone?
– Eu não sei qual o motivo – diz Simone -, mas o que sei é que você, Papillon, é um bicho do mato com todo o mundo, menos com a comandanta. Tanto assim, que na semana passada você estava carregando mais de 15 quilos de peixe, como me contou a mulher do guarda-chefe, e se negou a vender a ela dois peixinhos de nada, que ela estava com uma vontade louca de comprar porque não havia carne no açougue.
– Ah, essa que você está me contando é a maior, Simone!
– E você sabe o que ele disse à Sra. Kargueret outro dia? – continua Simone. – Ela vê ele passar com uns lagostins e uma moréia grande: “Me venda essa moréia, ou a metade dela, Papillon. Você sabe que nós da Bretanha sabemos fazer um prato muito gostoso com esse peixe”. E ele: “Não é só na Bretanha que se aprecia a moréia, minha senhora. Muita gente, inclusive o pessoal de Ardèche, sabe muito bem, desde o tempo dos romanos, que a moréia é uma iguaria fina”. E continuou andando sem lhe vender nada.
Elas se torcem de rir.
Volto para o campo furioso e à noite, na choça, conto a história toda.
– Muito cuidado – diz Carbonieri. – Essa dona põe você em perigo. Vá lá o menos possível e só quando tiver certeza de que o comandante está em casa.
Todo mundo é da mesma opinião. Resolvo fazer isso mesmo.
Descobri um marceneiro de Valence. Praticamente conterrâneo meu. Ele matou um guarda-florestal. É jogador apaixonado, sempre endividado: passa o dia fabricando peças de artesanato e a noite perdendo o que ganhou. Muitas vezes, ele fica de fornecer um objeto que ainda vai fazer para compensar o que pede emprestado e perde. Então, abusam dele, e por uma caixinha de pau-rosa de 300 francos pagam-lhe 150 ou 200 francos. Resolvi falar com ele.
Um dia, na lavanderia, eu digo a ele:
– Quero falar com você hoje à noite, espero nas privadas. Faço um sinal.
À noite nos encontramos a sós, para falar sossegados. Digo a ele;
– Bourset, somos conterrâneos, sabe?
– Essa não! Como assim?
– Você não é de Valence?
– Sou.
– E eu sou de Ardèche, por isso somos conterrâneos.
– Bem, e daí?
– Daí que eu não quero que o explorem quando você fica devendo dinheiro e eles querem te pagar a metade do valor de um objeto que você fez. Traga o objeto para mim, eu consigo o preço justo. Só isso.
– Obrigado – diz Bourset.
A toda hora entro em cena para ajudá-lo. Ele tem sempre problemas com seus credores. Consigo arranjar sempre tudo bem, até o dia em que ele tem uma dívida com Vicioli, bandoleiro da Córsega, que é um dos companheiros com quem me entendo bem. Fico sabendo do caso através de Bourset, que vem me contar que Vicioli lhe faz ameaças se ele não pagar os 700 francos que deve, que no momento está fabricando uma pequena escrivaninha quase acabada, mas não sabe quando poderá acabá-la porque é um trabalho escondido. Realmente, não se tem autorização para fazer móveis muito grandes por causa da quantidade de madeira de que necessitam. Respondo a Bourset que vou pensar no caso. E, em combinação com Vicioli, armamos uma história.
Caberá a Vicioli fazer pressão sobre Bourset e mesmo ameaçá-lo do pior. Aí caberá a mim entrar em cena e salvar Bourset. E assim fazemos. Desde esse caso – que, para Bourset, fui eu que resolvi -, Bourset só acredita em mim e me devota uma confiança absoluta. Pela primeira vez na sua vida de forçado, ele pode dormir descansado. Então, resolvo arriscar algo com ele.
Uma noite, digo a ele:
– Dou 2 000 francos se você fizer o que eu lhe pedir: uma jangada para dois homens, feita em peças desmontadas.
– Escute, Papillon, eu não faria isso para ninguém, mas por você me disponho a arriscar dois anos de reclusão, se me pegarem. Só tem uma coisa: não posso tirar peças de madeira tão grandes da marcenaria.
– Já tenho quem vai se encarregar disso.
– Quem?
– Os caras do carrinho, Naric e Quenier. Qual é o teu plano de trabalho?
– Primeiro é preciso fazer um desenho com escala, depois as peças uma por uma, com chanfraduras para que tudo se encaixe perfeitamente. O difícil é achar madeira que flutue bem, porque nestas ilhas tudo é madeira dura, que não flutua.
– Quando é que você me dá uma resposta?
– Daqui a três dias.
– Você quer ir embora comigo?
– Não.
– Por quê?
– Tenho medo dos tubarões e de me afogar.
– Você me promete fazer tudo o que puder para me ajudar?
– Juro que sim, pela vida dos meus filhos. Só tem uma coisa, é que vai demorar um bocado.
– Escute bem: desde já, eu vou lhe preparar uma defesa para caso de imprevisto. Vou copiar o desenho da jangada eu mesmo numa folha de caderno. Embaixo eu escrevo: “Bourset, se você não quiser ser assassinado, fabrique uma jangada igual à do desenho acima”. Mais tarde, eu vou lhe dar por escrito as ordens para a execução de cada peça. Cada peça que terminar, você deposita no local que eu vou lhe dizer. A peça será levada embora. Não procure saber por quem, nem quando (com isso, Bourset parece aliviado). Assim eu evito que você seja torturado, se pegarem, e você só arrisca um mínimo de uns seis meses.
– E se for você que eles pegarem?
– Então será o contrário. Eu confesso que sou o autor dos bilhetes. Você, é claro, guarde bem as ordens escritas. Está prometido?
– Está.
– Você não está com medo?
– Não, não me assusto mais, e fico contente de ajudar você. Eu ainda não disse nada a ninguém. Primeiro espero a resposta de
Bourset. E é só uma longa e interminável semana mais tarde que consigo falar com ele a sós, na biblioteca. Não há mais ninguém. É um domingo de manhã. Na lavanderia, no pátio, o jogo está no auge. Uns oitenta jogadores e outro tanto de curiosos.
Imediatamente ele me enche o coração de soclass="underline"
– O mais difícil era ter certeza de conseguir madeira leve e seca em quantidade suficiente. Resolvi o problema bolando uma espécie de armação de madeira que será forrada de cocos secos, sem tirar a casca de fibra, é claro. Não há nada mais leve que essa fibra e a água não consegue penetrar nela. Quando a jangada estiver pronta, fica a seu cargo conseguir um número suficiente de cocos para pôr dentro. Então, amanhã faço a primeira peça. Vai me levar uns três dias. A partir de quinta-feira, ela pode ser retirada por um dos cunhados, logo na primeira calmaria. Eu nunca começarei uma nova peça antes que a anterior tenha sido retirada da oficina. Está aqui o desenho que eu fiz, copie e me escreva a carta que você prometeu. Você já falou com os caras do carrinho?