– Não, ainda não, eu estava esperando a sua resposta.
– Pronto, a minha resposta é sim.
– Obrigado, Bourset, não sei como lhe agradecer. Olhe, tome 500 francos.
Aí, então, me olhando bem nos olhos, ele me diz:
– Não, guarde o seu dinheiro. Se você chegar à Terra Grande, vai precisar dele para depois você dar o fora de lá também. A partir de hoje, eu não vou mais jogar até que você tenha ido embora. Com alguns trabalhos, sempre dá para eu pagar os cigarros e o de comer.
– Por, que você não aceita?
– Porque eu não faria isso nem por 10 000 francos. Estou arriscando alto, mesmo com as precauções tomadas. Só que, de graça, se faz. Você me ajudou, você é o único que me estendeu a mão. Mesmo se me dá medo, fico contente de ajudar você a voltar a ser livre.
Vou fazendo a cópia do desenho numa folha de caderno e sinto vergonha diante de tanta nobreza ingênua. Nem passou pela cabeça dele que minhas ações a favor dele eram interesseiras e com segunda intenção. Sou obrigado a dizer a mim mesmo, para subir no meu Próprio conceito, que preciso fugir a qualquer preço, e mesmo, se for o caso, ao preço de situações difíceis e nem sempre bonitas. Durante a noite, falo com Naric, apelidado de “Boa-Praça”, o qual, mais tarde, ficou de pôr o seu cunhado a par da história. Ele me diz sem hesitar:
– Pode contar comigo para retirar as peças da oficina. Só que a gente não pode se apressar, porque só dá para retirar quando se sai com uma quantidade grande de material para fazer um trabalho de marcenaria na ilha. Em todo caso, prometo que não vamos perder nenhuma oportunidade.
Certo. Falta falar com Matthieu Carbonieri, porque é com ele que eu quero cair fora daqui. Ele concorda cem por cento.
– Matthieu, já encontrei o homem que vai me fabricar a jangada, já encontrei o homem que vai retirar as peças da oficina. A seu cargo fica descobrir no seu jardim o local para enterrar a jangada.
– Não, é perigoso num canteiro de legumes, porque de noite alguns guardas vão roubar legumes e, se passam por cima e sentem que está oco por baixo, acabamos apanhados como fujões. Vou fazer um esconderijo numa parede de sustentação, retirando uma pedra grande e fazendo uma espécie de pequena gruta. Assim, cada vez que me chega uma peça, é só eu levantar a pedra e recolocá-la depois de esconder a madeira.
– É para levar as peças diretamente para o seu jardim?
– Não, seria perigoso demais. Os caras do carrinho não têm nada de justificável a fazer no meu jardim, o melhor é combinarmos que de cada vez eles a depositem em um lugar diferente, não muito longe do meu jardim.
– Entendido.
Tudo parece estar acertado. Só faltam os cocos. Vou ver como é que poderei, sem chamar atenção, preparar uma quantidade suficiente.
A essa altura, sinto-me renascer. Só me falta falar com Galgani e com Grandet. Não tenho o direito de me calar, porque eles podem ser acusados de cumplicidade. Normalmente, eu deveria me separar deles oficialmente para viver sozinho. Quando digo a eles que vou preparar uma fuga e que devo me separar deles, eles me xingam e recusam categoricamente:
– Prepare a sua fuga o quanto antes. Quanto a nós, a gente se arranja por aqui mesmo. Até lá, fique com a gente, não será a primeira vez.
Já faz um mês que a fuga está se armando. Já recebi sete peças, das quais duas grandes. Fui ver a parede de sustentação onde Matthieu cavou o esconderijo. Não se vê que a pedra foi mexida, porque ele toma o cuidado de pregar musgo em volta. O esconderijo é perfeito, mas a cavidade me parece muito pequena para abrigar tudo. Enfim, por enquanto tem lugar.
O fato de estar armando uma fuga me dá um moral formidável.
Como mais do que nunca, e a pesca me mantém em forma física perfeita. Além disso, todas as manhãs pratico mais de duas horas de cultura física nos rochedos. Faço funcionarem sobretudo as pernas, porque a pesca já me faz funcionarem os braços. Descobri um troço bom para as pernas: avanço até mais longe do que faço para pescar e as ondas vêm bater contra as minhas coxas. Para agüentá-las e manter o equilíbrio, contraio os músculos. O resultado é excelente.
Juliette, a comandanta, continua sempre muito amável comigo, mas percebeu que só entro na casa dela quando o marido está. Ela me disse isso francamente e, para me deixar mais à vontade, me explicou que no dia do penteado ela estava brincando. Mas a moça que lhe serve de cabeleireira fica me espiando muitas vezes quando volto da pesca, sempre com umas palavras gentis sobre a minha saúde e o meu moral. Portanto, vai tudo às mil maravilhas. Bourset não perde ocasião de me fazer uma peça. Já há dois meses e meio que começamos.
O esconderijo está repleto, conforme; eu havia previsto. Só faltam duas peças, as mais compridas: uma de 2 metros, outra de 1 metro e meio. Essas peças não vão caber na cavidade.
Olhando para os lados do cemitério, avisto um túmulo recente, é o túmulo da mulher de um vigia, que morreu na semana passada. Um maço vagabundo de flores murchas está em cima. O guarda do cemitério é um velho forçado meio cego que chamam de Papá. file passa o dia inteiro sentado à sombra de um coqueiro no canto oposto do cemitério e, de onde está, não dá para ele ver o túmulo nem para ver se alguém chega perto. Então, reflito sobre a idéia de me servir desse túmulo para montar a jangada e meter dentro da armação feita pelo marceneiro o maior número possível de cocos. Mais ou menos uns trinta a 34 cocos, muito menos do que se pensava. Espalhei mais de cinqüenta em diferentes lugares. Só no quintal de Juliette tem uma dúzia. O moço de serviços vai pensar que eu os armazenei assim para um dia fazer óleo de coco.
Quando fico sabendo que o marido da morta foi embora para a Terra Grande, resolvo esvaziar uma parte da terra do túmulo, até a altura do caixão.
Matthieu Carbonieri, sentado em cima de uma parede; fica de sentinela. Na cabeça pôs um lenço branco com quatro nós nos cantos. Junto dele está um lenço vermelho, também com quatro nós. Enquanto não houver perigo, ele fica com o branco. Se aparecer alguém, quem quer que seja, ele põe o vermelho.
Esse trabalho muito arriscado não me leva mais do que uma tarde e uma noite. Não tenho que tirar terra até o caixão, porque fui obrigado a alargar o buraco para que ele tenha a largura da jangada: 1 metro e 20 mais uma folga. As horas me pareciam intermináveis e o gorro vermelho apareceu várias vezes. Afinal, hoje de manhã acabei. O buraco está coberto de folhas de coqueiro trançadas, que formam uma espécie de assoalho bem resistente. Por cima, uma pequena camada de terra. Quase não se vê. Meus nervos estão a ponto de estourar.
Já faz três meses que está em andamento esta preparação de fuga. Amarrados e numerados, tiramos os paus do esconderijo. Repousam sobre o caixão da dona, bem escondidos debaixo da terra que recobre as esteiras. Na cavidade da parede pusemos três sacos de farinha e uma corda de 2 metros para a vela, um garrafão cheio de fósforos e de coisas para riscá-los, uma dúzia de latas de leite, e é só.
Bourset está cada vez mais excitado. Até parece que é ele que vai embora e não eu. Naric está arrependido de não ter dito que ia também, no começo. Era só planejar uma jangada para três, em vez de dois.
Estamos na temporada das chuvas, chove todo dia, o que favorece as minhas idas ao túmulo onde eu quase já acabei de montar a jangada. Faltam as duas peças laterais do esqueleto. Aos poucos fui trazendo os cocos para mais perto do jardim do meu amigo. Podem ser apanhados facilmente e sem perigo no viveiro descoberto dos búfalos. Nunca meus amigos me perguntam em que ponto está o negócio. Apenas de vez em quando me dizem: “Tudo bem?” – “Sim, tudo bem.” – “Demora, não?” – “Não dá para andar mais depressa sem arriscar demais.” Só isso. Eu estava levando os cocos depositados na casa de Juliette, ela viu e me deu um medo enorme.