– Também acho. Não se fala mais nisso. Na hora da última peça, antes de agir, vocês localizem onde se encontra Bébert Celier. E com ele tomem as mesmas precauções que tomam com um guarda.
A noite inteira eu passei jogando um jogo animadíssimo, a marselhesa. Ganhei 7 000 francos. Quanto mais eu jogava a olho, mais eu ganhava. Às 4 e meia, saio, a pretexto de fazer o meu trabalho. Deixo o antilhano fazendo o trabalho para mim. A chuva parou e lá pelo meio da noite, ainda bem escuro, vou até o cemitério. Conserto a terra com os pés, porque não acho o ancinho, mas, com os sapatos que uso, o negócio fica bem ajeitado. Às 7 horas, quando desço para a pesca, já está um sol maravilhoso. Encaminho-me para o extremo sul de Royale, onde tenho a intenção de lançar a jangada na água. O mar está alto e forte. Não sei, mas tenho a impressão de que não vai ser fácil se afastar da ilha sem ser jogado nos rochedos por uma onda. Ponho-me a pescar e logo apanho uma grande quantidade de peixes. Num instante, apanho mais de 5 quilos. Paro, depois de lavá-los com água do mar. Estou preocupado e cansado, depois dessa noite passada num jogo louco. Sentado à sombra, me recupero, e digo a mim mesmo que esta tensão em que vivo há mais de três meses está chegando ao fim e, pensando no caso de Celier, torno a concluir que não tenho o direito de assassiná-lo.
Vou falar com Matthieu. Do muro do seu jardim se vê bem o túmulo. Pelo caminho tem terra. Ao meio-dia, Carbonieri vai varrê-la. Passo pela casa de Juliette, dou a ela metade dos peixes. Ela diz:
– Papillon, tive sonhos maus com você; vi você cheio de sangue e depois acorrentado. Não faça besteiras, iria me doer demais se lhe acontecesse alguma coisa. Estou tão transtornada com esse sonho, que nem tomei banho nem me penteei. De binóculo, procurava o lugar onde você estava pescando e não achei. Onde você apanhou este peixe?
– Do outro lado da ilha. Por isso é que a senhora não me via.
– Por que vai pescar tão longe, onde eu não posso ver você de binóculo? E se uma onda o leva? Ninguém vai ver, ninguém vai ajudar você a escapar vivo dos tubarões.
– Ora, não exagere!
– Você acha que eu exagero? Eu proíbo você de pescar atrás da ilha e, se me desobedecer, eu mando retirar a sua autorização de pesca.
– Ora, vamos, seja sensata, minha senhora. Para que a senhora fique satisfeita, eu vou dizer ao moço de serviços o local onde eu vou pescar.
– Está bem. Você está com jeito de estar cansado.
– É, vou subir para me deitar no campo.
– Certo, mas estou à sua espera às 4 horas, para tomar café. Você vem?
– Sim, senhora. Até logo.
Só me faltava mais essa para me intranqüilizar: o sonho de Juliette. Como se eu já não tivesse bastante problemas concretos, precisava ainda de mais alguns, sonhados!
Bourset conta que se sente realmente observado. Já faz quinze dias que esperamos pela última peça de 1 metro e meio. Naric e Quenier dizem que não vêem nada de anormal, no entanto Bourset persiste em não querer fazer a peça. Se ela não tivesse cinco chanfraduras que têm de se encaixar sem 1 milímetro de folga, Matthieu teria fabricado ela no jardim. Realmente é nela que precisam se encaixar as cinco outras nervuras da jangada. Naric e Quenier estão encarregados de reformar a capela, e assim tiram e trazem facilmente muito material da oficina. E, ainda por cima, utilizam às vezes uma carreta puxada por um pequeno búfalo. Era preciso aproveitar estas circunstâncias.
Bourset, pressionado por nós, contra a sua vontade, faz a peça. Um dia, ele nos jura que, quando ele vai embora, mexem na peça e depois a recolocam no lugar. Falta talhar uma chanfradura na extremidade. Decidimos que Bourset talhe a chanfradura e depois coloque a madeira debaixo da sua bancada; ele deverá colocar em cima um fio de cabelo, para verificar depois se ela foi mexida: Ele faz a chanfradura e, às 6 horas, é o último a sair da oficina, após verificar que não há mais ninguém lá dentro, além do guarda. A peça está em seu lugar com o fio de cabelo. Ao meio-dia estou no campo, à espera da chegada dos trabalhadores da oficina, oitenta homens. Naric e Quenier estão Já, mas nada de Bourset. Um alemão vem para o meu lado e me entrega um bilhete bem fechado e colado. Verifico que não foi aberto. Leio: “O fio de cabelo desapareceu, quer dizer que mexeram na peça. Pedi ao guarda para ficar trabalhando durante a hora da sesta, para terminar uma caixinha de pau-rosa que estou fazendo. O guarda me deu autorização. Vou retirar a peça e colocá-la no lugar das ferramentas de Naric. Avise eles. É preciso que às 3 horas eles saiam imediatamente com a peça. Talvez a gente possa fazer isso antes de chegar o cara que mexe na peça”.
Naric e Quenier concordam. Estão entre os primeiros que esperam a hora da entrada na oficina. Na hora em que a turma vai começar a entrar na oficina, dois caras vão começar a brigar na frente da porta. Pedimos esse favor a dois conterrâneos de Carbonieri, dois corsos de Montmartre: Massani e Santini. Eles não perguntam por que, e isso é bom. Naric e Quenier deverão aproveitar o momento para tornar a sair depressa, com um material qualquer, como se estivessem preocupados em chegar logo a seu local de trabalho e não ligassem a mínima para o incidente. Todos concordamos que ainda temos uma oportunidade. Se der certo, eu é que devo ficar bem quietinho durante um mês ou dois, pois não resta dúvida de que alguém ou vários estão sabendo que uma jangada está sendo preparada. Eles que descubram quem a tem e onde a colocou.
Afinal, são 2 e meia, os homens se preparam. Entre a chamada e a saída para os trabalhos, temos meia hora. Partem. Bébert Celier está mais ou menos no meio da coluna das vinte fileiras de quatro.
Naric e Quenier estão na primeira fila, Massani e Santini na 12.a, Bébert Celier na décima. Considero que está bom assim, porque, no momento em que Naric pegar madeiras, barras e a peça, os outros ainda não terão acabado de entrar. Bébert terá chegado quase à porta da oficina ou talvez até um pouco adiante. Quando estourar a briga, como os dois vão urrar como bezerros, automaticamente todo mundo, e Bébert também, vai se virar para olhar. Quatro horas, tudo correu bem, a peça está debaixo de um monte de material na igreja. Eles não puderam retirá-la da capela, mas lá é um ótimo lugar para ela,
Vou falar com Juliette, ela não está em casa. Quando subo de volta, passo pela praça onde fica a administração. Na sombra, em pé, vejo Massani e Jean Santini esperando para entrar na cadeia. Com isso a gente já contava. Passo junto deles e pergunto:
– Quanto?
– Oito dias – responde Santini.
Um guarda corso diz:
– Que vergonha, dois conterrâneos brigarem!
Volto para o campo. Seis horas, Bourset retorna muito feliz:
– Até parece – me diz ele – que eu tinha um câncer e depois o médico me informa que era engano dele, que não tenho nada.
Carbonieri e meus amigos estão triunfantes e me dão parabéns pela maneira como organizei a operação. Naric e Quenier também estão satisfeitos. Vai indo tudo muito bem. Durmo a noite toda, embora, no fim do dia, os jogadores me tivessem convidado. Faço de conta que estou com uma tremenda dor de cabeça. O que eu tenho, na verdade, é que estou morto de sono, mas contente e feliz por estar tão perto da solução. Pois o mais difícil está feito.
Hoje de manhã, a peça foi colocada provisoriamente por Matthieu na cavidade da parede. De fato, o guarda do cemitério faz a limpeza das alamedas, pelos lados do túmulo-esconderijo. Não seria prudente chegar perto agora. Todas as manhãs, ao nascer do sol, às pressas, eu pego um ancinho de madeira e vou arrumar a terra em cima do túmulo. Com uma vassoura limpo a alameda; depois, e sempre às pressas, volto ao meu serviço, deixando a vassoura e o ancinho junto com o meu material de limpeza.
Agora já faz quatro meses justos que a fuga está sendo preparada, e nove dias que afinal recebemos a última peça da jangada. Já não chove mais de dia e às vezes nem durante a noite. Todas as minhas faculdades estão em estado de alerta, para as duas horas H: primeiro, para a hora de tirar do jardim de Matthieu a famosa peça e montá-la na jangada, com cada nervura bem encaixada nela. É uma operação que só se pode fazer de dia. Depois, para a hora da partida. Ela não poderá ser imediata, porque, depois de tirarmos a jangada de seu esconderijo, vai ser preciso recheá-la com os cocos e guardar dentro os víveres.