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A instrução terminou. Aguardo o momento de descer até Saint-Laurent, para passar pelo tribunal militar. Só fico fumando, quase não ando. Deram-me o direito de um segundo passeio de uma hora, durante a tarde. Nunca o comandante nem os guardas, salvo aquele da oficina e o da instrução, demonstraram hostilidade para comigo. Todos me falam sem rancor e me deixam mandar vir quanto fumo eu quiser.

A minha partida está marcada para sexta-feira, hoje é terça. Na quarta de manhã, às 10 horas, estou no pátio já faz umas duas horas, quando o comandante me manda chamar e diz:

– Venha falar comigo.

Saio com ele, sem escolta. Pergunto para onde vamos, ele pega o caminho da casa dele. A certa altura, ele me diz:

– Minha esposa quer falar com você antes da sua partida. Não quero impressioná-la, por isso não mandei vir junto nenhum guarda armado. Espero que você se comporte corretamente.

– Sim, meu comandante.

Chegamos à casa dele.

– Juliette, eu lhe trouxe o seu protegido, conforme prometi. Você sabe que preciso levá-lo de volta antes do meio-dia. Você tem quase uma hora para conversar com ele.

E ele se retira discretamente.

Juliette se aproxima de mim e põe a mão no meu ombro, olhando-me nos olhos. Os olhos dela brilham ainda mais assim cheios de lágrimas, que felizmente ela contém.

– Você está louco, meu amigo. Se você tivesse me dito que queria ir embora, eu acho que poderia ter sido capaz de facilitar as coisas. Pedi a meu marido que ajudasse você o mais possível e ele me disse que isso não depende dele, infelizmente. Mandei buscar você, em primeiro lugar, para ver como está. Dou-lhe parabéns pela sua coragem, você está com um aspecto melhor do que eu esperava. E também para dizer que eu quero lhe pagar o peixe que você tão generosamente me deu durante tantos meses. Olhe, tome 1000 francos, é tudo o que eu posso lhe dar. Lamento não poder fazer mais por você.

– Olhe, minha senhora, não estou precisando de dinheiro. Eu lhe peço, por favor, compreenda que eu não devo aceitar; isso seria, na minha opinião, manchar a nossa amizade.

E afasto com um gesto as duas notas de 500 francos que ela me oferecia tão generosamente.

– Não insista, lhe peço, por favor.

– Como você preferir – diz ela. – Aceita um pouco de licor?

E, durante mais de uma hora, essa mulher admirável conversa comigo, uma conversa encantadora. Ela considera que eu serei certamente absolvido pela morte daquele canalha e que vou pegar talvez de dezoito meses a dois anos pelo resto.

No instante da despedida, ela me aperta a mão entre as suas, demoradamente, e me diz:

– Até breve, boa sorte.

Explodem os soluços.

O comandante me leva de volta à cela. No caminho, digo a ele:

– Comandante, o senhor tem a mulher mais nobre do mundo.

– Eu sei, Papillon, ela não é feita para viver aqui, é cruel demais para ela. E, no entanto, o que fazer? Afinal, daqui a quatro anos, me aposento.

– Aproveito este momento em que estamos sós, comandante, para lhe agradecer, porque graças ao senhor recebi o melhor tratamento possível. Sei que poderia ter prejudicado seriamente o senhor, se eu tivesse conseguido o meu intento.

– É verdade, você poderia ter-me causado grandes aborrecimentos. Apesar disso, quer saber de uma coisa? Você merecia ter conseguido.

E, já às portas do bloco das celas disciplinares, ele acrescenta:

– Adeus, Papillon. Que Deus lhe proteja, você vai precisar.

– Adeus, comandante.

Ah! sim, bem que era necessária a proteção de Deus para mim, porque o tribunal militar presidido por um oficial de quatro galões foi inexorável. Três anos por roubo e desvio de material pertencente ao Estado, profanação de sepultura e tentativa de evasão, e mais cinco anos, sem prejuízo da primeira pena, pela morte de Celier. Totaclass="underline" oito anos de reclusão. Se eu não tivesse sido ferido, é garantido que me condenavam à morte.

Esse mesmo tribunal, tão severo comigo, foi mais compreensivo ante um polaco da cavalaria francesa, chamado Dandosky, que tinha matado dois homens. O tribunal o condenou a apenas cinco anos e, no entanto, no caso dele havia premeditação indiscutível.

Dandosky era um padeiro encarregado de fazer somente o fermento. O horário dele era apenas das 3 às 4 da manhã. Como a padaria ficava no cais, diante do mar, ele passava todas as suas horas de folga pescando. Era um tipo tranqüilo, falava mal o francês e não se dava com ninguém. Esse condenado aos trabalhos forçados perpétuos dedicava todos os seus sentimentos de ternura a um belo gato preto de olhos verdes, que praticamente vivia com ele. Os dois dormiam juntos, o gato o seguia como um cachorro ao trabalho, para lhe fazer companhia. Em resumo, era uma grande estima entre ele e o bichinho. O gato o acompanhava na pesca, mas, quando fazia calor demais e não havia uma sombrinha por perto, voltava sozinho até a padaria e se deitava na rede de seu amigo. Ao meio-dia, quando batia o sino, saía ao encontro do polaco e pulava para pegar o peixinho com que o homem o atiçava, até o gato o agarrar.

Os padeiros moram todos juntos numa sala pegada à padaria. Um dia, dois forçados chamados Corrazi e Angelo convidam Dandosky a comer um guisado de coelho preparado por Corrazi, como ele fazia pelo menos uma vez por semana. Dandosky senta-se à mesa com eles e comem juntos; para a refeição, Dandosky levara, por sua vez, uma garrafa de vinho. À noite, o gato não voltou para casa. O polaco procurou o gato por toda parte em vão. Passa uma semana inteira e nada do gato. Triste com a perda do companheiro, Dandosky não se interessa mais por nada. Era mesmo triste que o único ser que Dandosky amava e que tão bem lhe retribuía esse amor tivesse desaparecido misteriosamente. A esposa de um vigia, quando soube da imensa dor de Dandosky, deu-lhe de presente um filhotinho de gato. Dandosky expulsou o gatinho, indignado, e perguntou à mulher como é que ela podia conceber que ele pudesse gostar de outro gato que não o dele; seria, dizia ele, uma grave ofensa à memória do amado desaparecido.

Um dia, Dandosky agrediu um aprendiz de padeiro que era também distribuidor de pão. O aprendiz não morava na mesma sala dos padeiros, mas com ele e lhe diz:

– Quer saber de uma coisa, o coelho que Corrazi e Angelo te fizeram comer era o teu gato.

– Cadê a prova? – grita o polaco, agarrando o outro pelo pescoço.

– Debaixo da mangueira que fica atrás dos canoeiros, um pouco mais para lá, eu vi Corrazi, quando ele estava enterrando a pele do seu gato.

Como um louco, o polaco vai verificar e realmente encontra a pele. Recolhe a pele, já meio podre, a cabeça em decomposição. Lava-a com água do mar, estende-a ao sol para que seque, depois a envolve num pano muito limpo e enterra-a num local seco, bem fundo, para que as formigas não a comam. Foi isso que ele me contou.

De noite, à luz de um lampião de petróleo, Corrazi e Angelo um ao lado do outro, sentados num banco de tábuas muito grossas, na sala dos padeiros, jogam cartas com mais dois parceiros. Dandosky é um homem de uns quarenta anos, estatura mediana, entroncado, largo de ombros, muito forte. Prepara um grande porrete de pau-ferro, aliás tão pesado como esse metal; aproxima-se por trás e sem uma palavra vibra um fortíssimo golpe na cabeça de cada um dos dois. Os crânios se abrem como duas granadas e escorrem os miolos pelo chão. Possuído de raiva furiosa, Dandosky não se satisfaz simplesmente com a morte dos dois, ele pega os miolos e os esmaga contra a parede da sala. Fica tudo borrado de sangue e miolos.