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Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta; um, dois, três, quatro, cinco, outra meia volta, começo a andar e reencontro imediatamente a posição da cabeça, dos braços, e a medida exata da passada, para que o passeio funcione com precisão. Resolvo andar apenas duas horas de manhã e duas horas de tarde, até saber se posso contar com uma alimentação privilegiada em quantidade. Nada de começar a desperdiçar energia inutilmente com esse nervosismo dos primeiros dias.

Sem dúvida, é lamentável ter fracassado na etapa final. Claro que era só o primeiro episódio da fuga, além disso era preciso fazer uma travessia bem sucedida de mais de 50 quilômetros, com aquela frágil jangada. E, depois que aportássemos na Terra Grande, talvez precisássemos executar de novo uma evasão. Se a partida funcionasse bem, a vela de três sacos de farinha teria impelido a jangada a mais de 10 quilômetros por hora. Em menos de quinze horas, talvez doze, nós tocaríamos a terra. Isso, claro, se chovesse durante o dia, porque apenas com chuva podíamos nos arriscar a içar vela. Se bem me lembro, no dia seguinte ao dia em que me fecharam na cela, choveu. Não tenho muita certeza. Procuro encontrar falhas ou erros cometidos. Encontro só dois. O marceneiro quis fazer uma jangada muito bem feita demais, segura demais, e por isso, para encaixar os cocos, precisou fazer uma armação especial; praticamente, eram duas jangadas, uma dentro da outra. Daí, havia um número grande demais de peças a fabricar, e ele precisava de tempo demais para fabricá-las com todas as precauções.

Em segundo lugar, o mais grave: logo à primeira dúvida séria sobre Celier, na mesma noite, eu devia ter matado ele. Se eu tivesse feito isso, quem sabe onde estaria agora! Mesmo se a coisa desse certo ao chegarmos à Terra Grande ou se eu fosse apanhado na hora do embarque, só pegaria três anos e não oito, e me ficaria a satisfação da ação realizada. Onde eu estaria agora, se tudo tivesse dado certo, nas ilhas ou na Terra Grande? Quem é que vai saber? Talvez conversando com Bowen, em Trinidad ou protegido em Curaçau pelo Bispo Irénée de Bruyne. E, então, só se tornaria a partir depois de estarmos seguros de que tal ou tal outro país nos receberia. Em caso contrário, me seria fácil voltar sozinho, diretamente, num barco pequeno, para Guajira, para a minha tribo.

Adormeci muito tarde, consegui dormir um sono normal. Essa primeira noite não foi tão deprimente. Viver, viver, viver. Devo repetir cada vez que estiver a ponto de me entregar ao desespero, três vezes, essa palavra de esperança: “Enquanto há vida, há esperança”.

Passou-se uma semana. Desde ontem notei modificação das porções da minha comida. Um espetacular pedaço de carne cozida no almoço, e no jantar uma tigela de lentilhas puras, quase sem água. Como criança, digo a mim mesmo: lentilhas tem ferro, que é muito bom para a saúde.

Se continuar assim, vou poder andar dez a doze horas por dia, e à noite, então, bem cansado, estarei em estado propício para viajar pelas estrelas. Não, não é delírio, estou com os pés na terra, bem na terra, penso em todos os casos de forçados que conheci nas ilhas. Cada um tem a sua história, antes e durante. Penso também nas lendas que correm de boca em boca nas ilhas. Uma dessas lendas, que tenho intenção de verificar se é verdadeira, caso eu volte às ilhas, é a lenda do sino.

Conforme já contei, os forçados não são enterrados, são jogados ao mar entre Saint-Joseph e Royale, num ponto infestado de tubarões. O morto é envolvido em sacos de farinha, tendo aos pés uma corda amarrada a uma grande pedra. Um caixão retangular, sempre o mesmo, é instalado na horizontal, na parte dianteira do barco. Uma vez chegados ao local designado, os seis forçados remadores levantam os remos horizontalmente, à altura da bordagern. Um homem inclina o caixão e outro abre uma espécie de alçapão. Então o corpo desliza para dentro da água. É certo, e não há margem para nenhuma dúvida, que os tubarões imediatamente cortam a corda. Nunca dá para um morto afundar muito. Volta á superfície e os tubarões começam a disputar esse manjar de festa. Ver comer um homem, segundo aqueles que já assistiram a esse espetáculo, é impressionante, porque, além de tudo, quando os tubarões são muitos, conseguem levar a mortalha com seu conteúdo para fora da água, e então, dilacerando os sacos de farinha, carregam grandes nacos do cadáver.

Tudo se passa exatamente conforme descrevi, mas há uma coisa que não pude verificar. Os condenados, sem exceção, contam que o que atrai os tubarões àquele local é o som do sino que tocam na capela quando há um morto. Dizem que às vezes a gente pode ficar na ponta do quebra-mar de Royale às 6 da tarde sem ver um único tubarão. Quando batem o sino da igrejinha, na mesma hora o local se infesta de tubarões à espera do cadáver. Além do sino, não há nada que explique por que eles acorrem a esse ponto nessa hora precisa. Esperemos que eu não venha a servir de prato do dia para os tubarões de Royale em semelhantes condições. Que eles me devorem vivo durante uma fuga, pouco ligo, pelo menos terá sido durante uma iniciativa minha na luta pela liberdade. Mas, depois de uma morte por doença numa cela, isso não, isso não pode acontecer.

Podendo comer bastante, graças à organização montada pelos meus amigos, estou em perfeita saúde. Ando das 7 horas da manhã às 6 da tarde sem parar. Dessa forma, a tigela do jantar, cheia de legumes secos, feijão, lentilha, ervilha seca ou arroz na gordura, fica vazia em pouco tempo. Como sempre tudo sem ter de me esforçar. Andar me faz bem, o cansaço que isso dá é sadio e consigo me transformar noutro homem enquanto ando. Ontem, por exemplo, passei o dia todo nos campos de uma aldeia de Ardèche que se chama Favras. Muitas vezes, depois que minha mãe morreu, eu ia passar umas semanas na casa da minha tia, irmã da minha mãe, professora primária do lugarejo. Pois bem, ontem eu estava virtualmente nesse bosque de castanheiros, colhendo cogumelos, e depois ouvia meu pequeno amigo, o pastor, dar ordens a seu cachorro treinado, que obedecia com grande eficiência trazendo de volta uma ovelha desgarrada ou castigando uma cabra muito passeadeira. E, mais ainda, cheguei até a sentir na boca o sabor fresco da fonte ferruginosa, me deliciei com as leves cócegas das bolhas minúsculas que me subiam ao nariz. Essa capacidade tão autêntica e verdadeira de reencontrar momentos passados há mais de quinze anos, essa faculdade de revivê-los sentidamente com tanta intensidade só podem ser conseguidas numa cela, longe de tudo quanto é barulho, no silêncio mais completo.

Chego a ver a cor amarela do vestido de tia Outine. Ouço o murmúrio do vento nos castanheiros, o ruído seco que faz a casca da castanha ao cair no chão seco e macio, quando mergulha num tapete de folhas. Um enorme javali apareceu por entre as esbeltas giestas e me deu um medo tão grande, que saí correndo, deixando cair pelo caminho grande parte dos cogumelos colhidos. Sim, passei – enquanto andava – o dia inteiro em Favras com a titia e meu coleguinha, o pastor Julien. Essas lembranças revividas, tão doces, tão límpidas, tão precisas, não há ninguém que possa me impedir de me refugiar nelas, de buscar nelas a paz que é necessária ao meu espírito atormentado e magoado.

Para a sociedade, estou em uma dessas inúmeras celas da devoradora de homens. Na realidade, roubei-lhes um dia inteiro, que passei em Favras, nos campos, entre os castanheiros, e até mesmo bebi água mineral na fonte chamada do Pessegueiro.