Já passaram os seis primeiros meses. Eu me determinara a contar por unidades de seis meses; mantive meu propósito. Só hoje de manhã diminuí de dezesseis para quinze… Mais quinze vezes seis meses.
Vamos fazer o balanço da situação. Nenhum incidente pessoal nestes seis meses. A comida é sempre a mesma, mas, por outro lado, a ração que recebo é bem razoável e assim minha saúde não vai se prejudicar. À minha volta, muitos suicidas e loucos furiosos, que felizmente logo são levados embora. É deprimente ficar ouvindo gritarem, gemerem ou se queixarem durante horas, ou dias inteiros. Bolei um recurso bom, só que faz mal para o ouvido. Corto um pedaço de sabão e enfio nos dois ouvidos, para não ouvir mais esses gritos horripilantes. Infelizmente, o sabão me prejudica os ouvidos, que começam a doer muito daí a um ou dois dias.
Pela primeira vez desde que estou nos trabalhos forçados, me rebaixo a pedir uma coisa a um guarda. Acontece que um guarda que traz a sopa é de Montélimar, perto da minha terra. Eu o conheci na Ilha Royale e peço a ele para me arranjar uma pequena bola de cera, para me ajudar a suportar a barulheira que fazem os loucos antes de serem levados embora. No dia seguinte, ele me traz uma bola de cera do tamanho de uma noz. É incrível o alívio que dá não ouvir mais esses infelizes.
Já tenho bastante prática com as grandes lacraias. Em seis meses, só fui mordido uma vez. Resisto muito bem, quando acordo e há uma passeando pelo meu corpo nu. A gente se acostuma com qualquer coisa, é só questão de se controlar, porque as cócegas que fazem as patas e as antenas das lacraias são muito desagradáveis. Mas, se a gente pega a lacraia de mau jeito, ela morde. Vale mais a pena esperar que desça espontaneamente de cima da gente e, aí sim, ir para cima dela e matá-la. Em cima do meu banco de cimento há sempre dois ou três pedacinhos de pão fresco. Forçosamente, o cheiro do pão as atrai e elas vão para lá. Então eu as mato.
Preciso afastar uma idéia fixa que me persegue. Por que não matei Bébert Celier no mesmo dia em que tive dúvidas sobre sua função nefasta? Então, incessantemente, argumento e contra-argumento comigo mesmo: quando é que se tem o direito de matar? Em seguida, me defino: o fim justifica os meios. O fim, para mim, era lograr a fuga, eu tive a oportunidade de terminar uma jangada bem construída, de escondê-la em local seguro. O embarque seria dentro de alguns dias. Uma vez que eu estava a par do perigo que Celier representava – e isso na época da penúltima peça, que, por milagre, chegara a seu destino – deveria ter executado o homem sem hesitação. E se eu estivesse enganado, se as aparências fossem falsas? Teria matado um inocente. Que horror! Mas é ilógico que eu me coloque um problema de consciência, eu, um condenado aos trabalhos forçados perpétuos. Pior do que isso, condenado a oito anos de reclusão no meio de uma pena perpétua!
E o que é que você pretende, que é você, sobra de lixo, tratado como uma imundície da sociedade? Só queria saber se os doze jurados de merda que o condenaram se perguntaram, uma vez que fosse, se achavam que verdadeiramente, conscientemente, fizeram bem em condená-lo a uma pena tão dura. E se o promotor (ainda estou escolhendo com qual instrumento vou arrancar a língua dele) se perguntou se não foi um pouco exagerado no seu requisitório. Com certeza, nem mesmo os meus advogados se lembram mais de mim! Na certa aludem em termos gerais a “aquele caso infeliz do Papillon” no julgamento de 1932: “Vocês sabem, prezados colegas, naquele dia eu não estava lá muito em forma e, para meu azar, o promotor Pradel estava num de seus melhores dias. Ele ganhou esse caso para a acusação de forma magistral. É verdadeiramente um adversário de grande classe”.
Visualizo e ouço tudo isso como se estivesse ao lado do Dr. Raymond Hubert, no meio de uma conversa entre advogados, ou em uma reunião mundana, ou mais precisamente nos corredores do Palácio da Justiça.
Um único homem, sem sombra de dúvida, tem uma posição de magistrado probo e honesto, o presidente do tribunal, Bévin. Este, sim, pode muito bem, homem imparcial que é, discutir entre colegas ou numa reunião mundana o perigo que existe em fazer julgar um homem por jurados. Sem dúvida ele deve dizer, evidentemente que com palavras bem adequadas, que os doze sacanas do júri não estão preparados para uma tal responsabilidade, que eles se impressionam demais pelo brilho da acusação ou da defesa, conforme uma das duas domina esse torneio de oratória; que eles absolvem depressa demais, ou condenam sem saber muito bem como, conforme a atmosfera positiva ou negativa que consegue criar o mais forte dos dois partidos.
Isso quanto ao presidente, e também à minha família, mas a minha família talvez tenha ficado com raiva de mim, por causa dos problemas que criei para ela. Só um, papai, meu pobre pai, é que não deve ter-se queixado da cruz que seu filho lhe pôs nos ombros, tenho certeza. Essa cruz tão pesada, ele a carrega sem acusar seu menino, sem censurá-lo, e isso apesar de, como professor primário, ser respeitador da lei e até ensine a compreendê-la e a aceitá-la. Tenho certeza de que, do fundo do seu coração, ele exclama: “Seus sórdidos, vocês mataram meu filho, fizeram pior, condenaram ele a morrer aos pouquinhos, com 25 anos!” Se meu pai soubesse onde anda agora o menino dele, o que fizeram com o menino dele, era capaz de virar anarquista.
Hoje à noite, a devoradora de homens esteve mais do que nunca à altura da sua fama. Percebi que houve dois enforcados e um que se sufocou enfiando trapos de pano na boca e nas narinas. A cela 127 fica perto do lugar onde os guardas fazem o revezamento de horário e, as vezes, ouço pequenos trechos das conversas deles. Hoje de manhã, por exemplo, eles falaram bem baixinho, para eu não ouvir o que diziam sobre os acontecimentos da noite.
Mais seis meses passaram. Faço um balanço da situação e acabo de gravar na madeira um belo “14”. Tenho um prego que uso apenas de seis em seis meses. Faço o balanço: a saúde continua boa e o moral vai muito bem.
Graças às minhas viagens por entre as estrelas, é muito raro que eu tenha crises demoradas de desespero. Bem depressa eu as supero, e armo com todos os detalhes uma viagem real ou imaginária que afugenta as idéias sombrias. A morte de Celier me ajuda muito a sair vitorioso desses momentos de crises agudas. Digo a mim mesmo: “Eu estou vivo, estou vivo, estou vivo e preciso continuar vivo, viver, viver para um dia reviver livre. Ele, que me impediu de fugir, ele está morto e nunca vai ser livre como eu vou ser um dia, é certo, é garantido. De qualquer maneira, se eu sair com 38 anos, não é ainda a velhice, e a próxima fuga vai ser definitiva, tenho certeza”.
Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta; um, dois, três, quatro, cinco, outra meia volta. Já faz alguns dias que minhas pernas estão pretas e me sangram as gengivas. Deveria me declarar doente? Aperto com o polegar a minha perna perto do calcanhar e a marca fica estampada. Tenho a impressão de que estou cheio de água. Já faz uma semana que não posso mais andar dez ou doze horas por dia, fico muito cansado só com seis horas de marcha, em duas vezes. Quando limpo os dentes, não posso mais esfregá-los com a toalha felpuda embebida em sabão, porque as gengivas doem e sangram muito. E até um dente me caiu, sem mais nem menos, ontem, um incisivo do maxilar superior.
É com uma verdadeira revolução que terminam os seis meses seguintes. Efetivamente, ontem nos mandaram pôr a cabeça para fora e passou um médico que levantava os lábios de cada um de nós. E, hoje de manhã, depois de exatamente dezoito meses que estou nesta cela, a porta se abriu e me disseram:
– Saia, encoste-se na parede e fique esperando.
Eu era o primeiro ao lado da porta, saíram uns setenta homens.