O seu tornozelo, atipicamente, estava doendo infernalmente.
O chão não só ficava uns sete centímetros mais distante do tubo de ventilação do que ele se lembrava como também ficava em um planeta diferente do que ele se lembrava, mas foram os tais sete centímetros que o deixaram intrigado. Os escritórios do Guia do Mochileiro das Galáxias eram freqüentemente realocados, sem aviso prévio, para outro planeta — por causa do clima local, da hostilidade local, das contas de luz ou dos impostos —, mas costumavam ser reconstruídos exatamente da mesma maneira, com uma precisão molecular. Para uma grande parte dos funcionários da empresa, o layout dos seus escritórios representava a única constante que eles conheciam em um universo pessoal severamente distorcido.
Havia, no entanto, algo de estranho.
Aquilo não era por si só surpreendente, pensou Ford, apanhando a sua toalha de arremesso peso-pena. Praticamente tudo na sua vida era, em menor ou maior escala, estranho. O problema é que aquilo era estranho de uma maneira um pouquinho diferente da que ele estava acostumado, o que era no mínimo esquisito. Não conseguiu focar na questão muito claramente.
Sacou a sua ferramenta de extração bitola 3.
Os alarmes estavam disparando do mesmo jeito que ele conhecia tão bem. Havia uma espécie de melodia neles que quase se podia cantarolar. Aquilo tudo era bastante familiar. O mundo do lado de fora era novo para Ford. Nunca estivera em Saquo-Pilia Hensha antes e gostara do que vira. Tinha uma atmosfera meio carnavalesca.
Apanhou da mochila um arco-e-flecha de brinquedo que havia comprado em um camelô.
Descobrira que o motivo para a atmosfera carnavalesca em Saquo-Pilia Hensha era a comemoração da Concepção de São Antwelm, celebrada anualmente pelos habitantes locais. São Antwelm havia sido, em vida, um rei magnífico e muito popular, que chegara a uma conclusão igualmente magnífica e popular. Havia concebido que, de maneira geral, todos queriam ser felizes, se divertir e aproveitar ao máximo a companhia uns dos outros. Na ocasião de sua morte, doara toda a sua fortuna para financiar um festival anual que servisse de lembrete de sua descoberta, com fartura de comidas deliciosas, muita dança e brincadeiras bobas como a Caça ao Wocket. A sua Concepção fora tão extraordinária que ele virou santo por causa dela. Mais do que isso: todas as pessoas que haviam sido canonizadas por terem feito coisas como serem apedrejadas até a morte de maneira absolutamente penosa ou viverem de cabeça para baixo em barris de esterco foram instantaneamente rebaixadas e passaram a ser vistas como figuras um tanto embaraçosas.
O familiar prédio em forma de H dos escritórios do Guia erguia—se acima dos arredores da cidade, e Ford Prefect o invadira, como sempre costumava fazer. Sempre entrava pelo sistema de ventilação e não pelo lobby principal, porque o lobby principal era patrulhado por robôs cuja tarefa era questionar os funcionários do Guia sobre os seus gastos reembolsáveis. Os gastos reembolsáveis de Ford eram notoriamente complexos e intrincados, e ele chegara à conclusão de que, em geral, os robôs do lobby não estavam suficientemente equipados para compreender os argumentos que ele gostaria de apresentar sobre seus gastos. Preferia, portanto, entrar por um caminho alternativo.
Isso significava disparar praticamente todos os alarmes do prédio, menos o do departamento de contabilidade, e era exatamente isso que Ford queria. Acocorou-se atrás do armário, umedeceu com a língua a ventosa de borracha e depois encaixou a flecha de brinquedo na corda do arco.
Aproximadamente trinta segundos depois, um robô de segurança do tamanho de um melão pequeno veio voando pelo corredor, a cerca de um metro de altura, varrendo o espaço à sua esquerda e à sua direita em busca de algo fora do comum. Com um timing impecável, Ford lançou a flecha na direção contrária à
trajetória da máquina. A flecha atravessou o corredor e grudou, tremelicante, na parede do outro lado. Enquanto voava, o brinquedo chamou a atenção dos sensores do robô, que se fixaram nele instantaneamente, fazendo com que o robô desse uma guinada de noventa graus para segui-lo, descobrir que diabos era e para onde estava indo. Aquilo concedeu um segundo precioso para Ford, durante o qual o robô voador estava olhando na direção contrária. Lançou sobre ele a sua toalha e o capturou. Devido às diversas protuberâncias sensoriais que o robô possuía, ele não podia movimentar-se dentro da toalha. Apenas se contorcia, para frente e para trás, sem conseguir se virar e ver quem o havia capturado.
Ford o puxou rapidamente para si e o escorou no chão. O pobre coitado estava começando a choramingar. Com um gesto rápido e experiente, Ford inseriu a sua ferramenta de extração bitola 3 por baixo da toalha e removeu o pequeno painel de plástico que havia no alto do robô, dando acesso aos seus circuitos lógicos. Bom, a lógica é uma coisa maravilhosa, mas possui, tal como os processos de evolução descobriram, algumas desvantagens.
Qualquer coisa que pense logicamente pode ser enganada por outra coisa que pense no mínimo tão logicamente quanto ela. A maneira mais fácil de enganar um robô
completamente lógico é alimentá-lo com a mesma seqüência de estímulo várias vezes, de forma que fique travado em um loop. Isso foi muito bem demonstrado pelos famosos experimentos do Sanduíche de Arenque, conduzidos milênios atrás pelo IMDLDCSO
(Instituto Maximegalon para Descobrir Lenta e Dolorosamente Coisas Surpreendentemente Óbvias).
Nesses experimentos, um robô era programado para acreditar que gostava de sanduíches de arenque. Na verdade, essa era a parte mais difícil da experiência. Uma vez programado para acreditar que gostava de sanduíches de arenque, um sanduíche de arenque era colocado diante do robô. E então o robô pensava consigo mesmo: Humm!
Sanduíche de arenque! Adoro sanduíches de arenque.
Então ele se inclinava e apanhava o sanduíche com a sua colher para sanduíches de arenque e se endireitava novamente. Infelizmente para o robô, ele era projetado de uma maneira que a ação de se endireitar fazia com que o sanduíche de arenque deslizasse da sua colher e caísse no chão à sua frente. E então o robô pensava consigo mesmo: Humm! Sanduíche de arenque!... etc. e repetia a mesma ação muitas vezes seguidas. A única coisa que impedia que o sanduíche de arenque ficasse de saco cheio daquela palhaçada toda e fosse procurar outras maneiras de passar o seu tempo era que o sanduíche de arenque, por não passar de um pedaço de peixe morto entre duas fatias de pão, estava um pouquinho menos ciente do que estava acontecendo do que o robô.
Os cientistas do Instituto descobriram então que a força motriz por trás de toda mudança, desenvolvimento e inovação na vida era a seguinte: sanduíches de arenque. Publicaram um artigo sobre isso, mas ele foi amplamente criticado por ser muito idiota. Os cientistas verificaram os seus cálculos e perceberam que, na verdade, haviam descoberto o "tédio", ou melhor, a função prática do tédio. Extremamente animados, foram em frente e se depararam com outras emoções, como "irritabilidade",
"depressão", "relutância", "nojo", etc. e tal. A outra grande descoberta foi feita quando os cientistas pararam de usar os sanduíches de arenque e, subitamente, toda uma nova gama de emoções se tornou acessível para os estudos, tais como "alívio", "alegria",
"vivacidade", "apetite", "satisfação" e, a mais importante de todas, o desejo de
"felicidade".
Essa foi a maior das descobertas.
Pilhas e pilhas de complexos códigos de computador responsáveis pelo comportamento dos robôs em todas as contingências possíveis podiam ser substituídas de forma bem simples. Tudo o que os robôs precisavam era da capacidade de se sentirem entediados ou felizes e de algumas condições que necessitavam satisfazer para trazer à tona aqueles estados. Eles próprios descobririam o resto.