A verdade nua e crua é que armações e esquemas de todos os tipos rolavam por trás da fachada alegrinha e otimista que o Guia gostava de exibir — ou costumava gostar de exibir antes daquela corja da Corporação InfiniDim aparecer e começar a transformar o negócio todo em uma grande armação. Havia de tudo em termos de evasão de impostos, tramóias, subornos e negócios obscuros sustentando aquele edifício esplendoroso e lá embaixo, nos andares de alta segurança de pesquisa e processamento de dados do prédio, era onde tudo acontecia.
De tempos em tempos, o Guia transferia seus negócios — na verdade, seu prédio inteiro — para um mundo novo. Tudo era festa e alegria durante um tempo, enquanto firmava suas raízes na cultura e economia locais, oferecia oportunidades de emprego e gerava uma sensação de glamour e aventura, mas, no final das contas, não exatamente o lucro que a população local esperava.
Quando o Guia se mudava, levando o edifício consigo, partia quase como um ladrão no meio da noite. Para falar a verdade, partia exatamente como um ladrão no meio da noite. Normalmente saía de madrugada e, no dia seguinte, inevitavelmente várias coisas estavam faltando. Culturas e economias inteiras eram arruinadas após a sua passagem, muitas vezes em uma semana, deixando planetas outrora prósperos desolados e em estado de choque, mas ainda assim com a impressão de terem participado de uma grandiosa aventura.
Os agentes que olhavam intrigados para Ford enquanto ele avançava pelas áreas mais sensíveis do prédio sentiam-se um pouco mais tranqüilos com a presença de Colin, que estava voando ao lado de Ford, zumbindo de contentamento e facilitando seu percurso.
Alarmes começaram a disparar em outras partes do prédio. Talvez já tivessem descoberto Vann Harl, o que poderia ser um problema. Ford estava esperando poder colocar o Ident—I—Fácil de volta em seu bolso antes que o homem voltasse a si. Bom, aquilo era um problema a ser resolvido mais tarde e, no momento, Ford não fazia a menor idéia de como iria resolvê-lo. Por hora, não ia se preocupar. Aonde quer que fosse com o pequeno Colin, sentia-se envolto por um casulo de doçura e luz e, o mais importante, encontrava elevadores prestativos e obedientes e portas definitivamente educadas.
Ford começou a assoviar, o que provavelmente foi seu erro. Ninguém gosta de gente que assovia, muito menos a divindade que traça os nossos destinos. A porta seguinte não abria de jeito nenhum.
O que era uma pena, porque era justamente a que Ford estava procurando. Lá
estava ela, cinzenta e resolutamente fechada, com um aviso que dizia:
ENTRADA PROIBIDA
ATÉ MESMO PARA OS FUNCIONÁRIOS AUTORIZADOS.
VOCÊ ESTÁ PERDENDO SEU TEMPO AQUI.
VÁ EMBORA.
Colin comentou que as portas estavam ficando cada vez mais sinistras lá
embaixo, nos confins do prédio.
Estavam uns dez andares abaixo do solo agora. O ar era refrigerado e o revestimento cinza elegante que cobria as paredes dera lugar a paredes de um cinza brutal recobertas por chapas de alumínio. A euforia exuberante de Colin transformou-se em uma espécie de animação enfática. Ele disse que estava começando a ficar cansado. Estava gastando toda a sua energia tentando provocar um mínimo de boa vontade naquelas portas lá de baixo. Ford chutou a porta. Ela se abriu.
— Uma mistura de dor e prazer — murmurou ele. — Sempre funciona. Entrou no recinto, com Colin voando atrás dele. Mesmo com um arame enfiado no seu eletrodo de prazer, a sua felicidade era agora nervosa. Movia-se levemente de um lado para o outro.
O cômodo era pequeno, cinza e zumbia.
Era a central nervosa de todo o Guia.
Os terminais de computador dispostos ao longo das paredes cinzentas monitoravam cada aspecto das operações do Guia. No canto esquerdo do cômodo, os relatórios de pesquisadores de campo em toda a Galáxia eram recolhidos pela Subeta Net e encaminhados diretamente para a rede de escritórios dos editores assistentes, onde todos os trechos interessantes eram cortados pelas secretárias porque os editores assistentes estavam no almoço. O que sobrasse do original era enviado para o outro lado do prédio — a outra perna do H —, onde ficava o departamento jurídico. O jurídico se encarregava de cortar qualquer sobra do original que ainda estivesse remotamente decente e jogava tudo de volta para os escritórios dos editores executivos, que também estavam no almoço. Então as secretárias dos editores liam o material, achavam tudo uma grande baboseira e cortavam a maior parte do que havia sobrado. Quando algum dos editores finalmente voltava cambaleante do almoço, exclamava:
— Que porcaria medíocre é essa que o X (sendo X o nome do pesquisador de campo em questão) mandou lá do outro lado da Galáxia? De que adianta termos alguém passando três períodos orbitais inteiros nas malditas Zonas Cerebrais de Gagrakacka, com tudo o que está acontecendo por lá, se o melhor que ele pode fazer é mandar esse lixo anêmico pra cá? Corte a verba dele!
—
E o que vamos fazer com o texto? — a secretária perguntaria.
—
Ah, joga na rede. Temos que publicar alguma coisa mesmo.
Estou com dor de cabeça. Vou para casa.
Então a cópia editada ia para uma última sessão de cortes no departamento jurídico e depois era devolvida para o quarto onde estava Ford e, dali, transmitida por toda a Subeta Net, pronta para download imediato em qualquer ponto da Galáxia. Tudo isso era realizado por um equipamento monitorado e controlado pelos terminais que ficavam no canto direito do recinto.
Nesse ínterim, a ordem de cortar as despesas do pesquisador era retransmitida para o terminal de computador instalado no canto direito, e era para este terminal que Ford Prefect prontamente se dirigia.
[Se você está lendo isso no planeta Terra, então:
a)
Boa sorte. Existe uma quantidade incrível de coisas que você não conhece mesmo, mas você não está sozinho nessa. Só que, no seu caso, as conseqüências de não conhecer essas coisas são particularmente terríveis, mas, olha, não liga não, é assim que a vaca vai pro brejo e afunda.
b)
Não pense que sabe o que é um terminal de computadores. Um terminal de computador não é uma televisão velha e pesadona com uma máquina de escrever na frente. É uma interface onde mente e corpo podem se conectar com o universo e mover pedaços dele por aí.]
Ford correu até o terminal, sentou-se diante dele e mergulhou rapidamente no universo da máquina.
Não era o universo normal que ele conhecia. Era um universo de mundos densamente encobertos, de topografias selvagens, de altíssimos cumes de montanhas, ravinas de perder o fôlego, de luas se despedaçando em cavalos marinhos, de agravantes fissuras articuladas, oceanos silenciosamente pulsantes e insondáveis fundas arqueantes arremessadas.