Random franziu a testa diante do relógio do pai, que não fazia nada daquilo. Arthur gostava muito dele. Era melhor do que jamais poderia ter comprado com o seu próprio dinheiro. Ganhara de presente no seu aniversário de vinte e dois anos, de um padrinho muito rico, com complexo de culpa por ter se esquecido de todos os seus aniversários até então, e de seu nome também. O relógio marcava a data, a hora, as fases da lua e trazia "Para Albert, no seu aniversário de 21 anos" gravada, com a data errada, na superfície desgastada e arranhada da parte de trás do relógio, com letras ainda visíveis.
O relógio passara por poucas e boas nos últimos anos, sendo que a maior parte não era contemplada pela garantia. Não imaginava, é claro, que a garantia mencionasse expressamente que só asseguravam a precisão do relógio no campo magnético e gravitacional da Terra contanto que os dias tivessem vinte e quatro horas e que o planeta não explodisse e por aí vai. Eram pressupostos tão básicos que até mesmo os advogados os ignoraram.
Por sorte era um relógio de corda, ou melhor, ele dava corda sozinho. Em nenhum lugar da Galáxia teria encontrado baterias com exatamente as mesmas especificações de tamanho e voltagem que eram padronizadas na Terra.
— E o que são todos esses números? — perguntou Random.
Arthur apanhou o relógio da mão dela.
—
Esses números aqui em volta marcam as horas. Essa janelinha aqui à
direita, onde está escrito QUI, que significa quinta—feira, e o número é quatorze, ou seja, é o décimo quarto dia do mês de MAIO, que é o que está escrito nessa janelinha aqui.
—
E essa outra janela aqui em cima, em formato de lua crescente, informa as fases da lua. Em outras palavras, diz o quão iluminada a lua está pelo sol à noite, o que depende das posições relativas do sol e da lua e, bem... da Terra.
—
Da Terra — repetiu Random.
—
É.
—
É de lá que você e a mamãe vieram, não é? —É.
Random apanhou o relógio de volta e o examinou novamente, visivelmente impressionada com alguma coisa. Então, levou o relógio até o ouvido e escutou, perplexa.
—
Que barulho é esse?
—
É o tique—taque. É o mecanismo que faz com que o relógio funcione. São engrenagens. O relógio tem vários tipos de engrenagens entrelaçadas e molas que trabalham para movimentar os ponteiros na velocidade exata para marcar as horas, os minutos, os dias e tudo mais.
Random continuou olhando fixamente para o relógio.
—
Você está intrigada com alguma coisa — disse Arthur. — O que é?
— Estou — respondeu Random, finalmente. — Por que ele é todo feito em hardware?
Arthur sugeriu que saíssem para dar uma volta. Sentia que tinham que conversar sobre algumas coisas e, pela primeira vez, Random não estava exatamente receptiva e disposta, mas pelo menos não estava resmungando. Do ponto de vista dela, aquilo também era bem esquisito. Não que ela quisesse ser difícil de propósito; ela simplesmente não sabia como ser outra coisa. Quem era aquele sujeito? Que vida era aquela que ela supostamente deveria levar? Que mundo era aquele do qual supostamente deveria fazer parte? E que universo era aquele que não parava de penetrar por seus olhos e ouvidos? Para que ele servia? O
que queria?
Nascera em uma nave espacial que estava indo de algum lugar para algum outro lugar e, quando chegasse nesse outro lugar, ele teria se transformado em mais algum lugar de onde se devia seguir para outro lugar, e assim por diante. A sensação de que deveria estar em outro lugar era a sua expectativa normal. Era normal para ela sentir que estava no lugar errado.
As constantes viagens do tempo haviam somente agravado esse problema e feito com que ela tivesse a sensação de que não só estava sempre no lugar errado como, quase sempre, chegava lá na hora errada também.
Não notava que sentia isso, porque se sentira assim a vida toda, assim como jamais lhe parecera estranho que, em quase todos os lugares aonde ia, tivesse que usar pesos ou roupas especiais de antigravidade, além de um aparato especial para respirar. Os únicos lugares em que conseguia se sentir em casa eram os mundos que ela mesma criava nas realidades virtuais dos clubes elétricos. Nunca lhe passara pela cabeça que o universo real fosse um lugar ao qual ela pudesse pertencer.
E isso incluía aquele lugarzinho chamado Lamuella, onde a sua mãe a abandonara. E também incluía aquele sujeitinho que lhe concedera o precioso e mágico dom da vida em troca de um assento de primeira classe. Ainda bem que ele até era legal e simpático, pois, do contrário, iam ter problemas. De verdade. Random carregava no bolso uma pedra especialmente afiada com a qual podia criar muitos problemas. Ver as coisas do ponto de vista de uma outra pessoa, sem o treinamento adequado, pode ser muito perigoso.
Sentaram-se em um local de que Arthur gostava especialmente, em uma colina que tinha vista para o vale. O sol estava se pondo sobre o vilarejo. A única coisa de que Arthur não gostava muito era poder ver, ao longe, o vale seguinte, onde um profundo sulco escuro e estraçalhado na floresta marcava o lugar onde a sua nave havia caído. Mas talvez ele continuasse a voltar ali exatamente por aquele motivo. Havia diversos pontos dos quais se podia contemplar a exuberante e ondulada zona rural de Lamuella, mas ele era atraído para aquele lugar, com o seu irritante ponto negro de medo e dor acomodado bem no canto da sua visão. Nunca mais voltara lá desde que fora resgatado dos escombros. Nem queria.
Não iria suportar.
Na verdade, estivera perto do local do acidente no dia seguinte à queda, quando ainda estava entorpecido e confuso com o choque. Estava com a perna quebrada, algumas costelas fraturadas, umas queimaduras feias e não estava conseguindo pensar de maneira coerente, mas insistira que os aldeões o levassem até lá, e eles, um pouco constrangidos, aceitaram. No entanto, não conseguiu alcançar o ponto exato em que o chão borbulhara e derretera e, finalmente, abandonou aquele pesadelo para sempre. Logo depois correu um boato de que a área inteira estava mal-assombrada e ninguém mais se atreveu a ir para aquelas bandas desde então. A região estava cheia de vales lindos, verdejantes e encantadores — não fazia sentido ir justo para um altamente preocupante. O melhor é deixar o passado para trás e permitir que o presente avance para o futuro.
Random aninhava o relógio nas mãos, virando-o lentamente para deixar a distante luz do sol do entardecer brilhar calorosa sobre os arranhões e as imperfeições do grosso vidro. Ficava fascinada ao observar o ponteiro dos segundos tiquetaqueando em volta das horas como uma pequena aranha. Cada vez que ele completava um círculo inteiro, o mais comprido dos ponteiros principais movia—se exatamente para a próxima das sessenta pequenas divisões em volta do mostrador. E, quando o ponteiro maior completava o seu próprio círculo, o ponteiro menor se movia para o próximo dos dígitos principais.
—Você está olhando isso há mais de uma hora — comentou Arthur, calmamente.
—
Eu sei — respondeu ela. — Uma hora é quando o ponteiro grande dá
uma volta completa, não é?
—
Isso mesmo.
—
Então estou olhando há uma hora e dezessete... minutos.