Ela sorriu com um deleite profundo e misterioso e se mexeu bem devagarzinho, apoiando—se levemente no braço de Arthur. Ele sentiu um pequeno suspiro escapar de seus lábios, um suspiro que estava entalado em seu peito há semanas. Queria colocar o seu braço em volta dos ombros da filha, mas sentia que ainda era muito cedo, que ela ia acabar se retraindo. Mas algo estava funcionando. Algo dentro dela começava a amolecer. O relógio tinha um significado para ela que nenhuma outra coisa conseguira ter até então. Arthur não tinha certeza se já havia compreendido o que era, mas estava profundamente satisfeito e aliviado por algo ter mexido com sua filha.
—
Me explica de novo — pediu Random.
—
Não tem nenhum mistério — disse Arthur. — O mecanismo do relógio é
algo que foi se desenvolvendo ao longo de centenas de anos...
—
Anos terrestres.
—
É. Ele foi ficando mais e mais refinado, cada vez mais intrincado. Era um trabalho que exigia muita habilidade e cuidado. Precisava ser feito bem pequeno, mas tinha que continuar funcionando de maneira precisa, mesmo que você o balançasse ou deixasse cair no chão.
—
Mas só em um planeta?
—
Foi onde ele foi feito, sabe? Ninguém esperava que ele fosse para outro lugar e que tivesse que lidar com outros sóis, luas e campos magnéticos. Quero dizer, continua funcionando perfeitamente bem só não significa muita coisa aqui, tão longe da Suíça.
—
De onde?
—
Da Suíça. Esse aí foi fabricado lá. Um pequeno país, cheio de colinas. Cansativamente arrumadinho. As pessoas que o fizeram não sabiam que existiam outros mundos.
—
Uma coisa e tanto para alguém desconhecer.
—
Be
m, te m razão.
—
Então de onde eles vieram?
—
Eles, quer dizer, nós... nós simplesmente crescemos lá. Evoluímos na Terra. A partir de, sei lá, uma espécie de lodo ou algo assim.
—
Como esse relógio.
—
Humm. Não creio que o relógio tenha surgido do lodo.
—
Você não entende!
Random subitamente ficou de pé, aos berros.
—
Você não entende! Você não me entende, você não entende nada! Eu te odeio por ser tão burro!
Ela começou a correr freneticamente colina abaixo, ainda segurando firme o relógio e gritando que o odiava.
Arthur levantou-se num salto, assustado e sem entender nada. Começou a correr atrás dela pelos densos tufos de grama. Aquilo era doloroso para ele. Quando quebrara a perna no acidente, não havia sido uma fratura simples e não cicatrizara perfeitamente. Estava tropeçando e fazendo cara de dor enquanto corria. De repente, ela se virou e olhou para ele, com o rosto nublado de ira. Sacudiu o relógio.
—
Você não entende que existe um lugar ao qual isso pertence? Que, em algum lugar, ele funciona? Que, em algum lugar, ele se encaixa?
Virou-se e continuou a correr. Estava em forma e era bem veloz. Arthur não conseguiria alcançá-la de jeito nenhum.
Não que já não imaginasse que ser pai fosse uma tarefa tão difícil, mas é que ele não imaginava ser pai, muito menos assim, inesperadamente e em um planeta alienígena.
Random virou-se para gritar para ele novamente. Por algum motivo, sempre que ela fazia isso, Arthur parava.
_ Quem você pensa que eu sou? — perguntou ela, irritada. — O seu assento de primeira classe? Quem você acha que mamãe pensou que eu era? Uma espécie de passaporte para uma vida que ela não teve?
—
Não sei o que você quer dizer com isso — disse Arthur, ofegante e com dor.
—
Você não sabe o que ninguém quer dizer com nada!
—
Com o assim?
—
Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca!
—
Me diz! Por favor, me diz! O que ela quis dizer com "a vida que ela não teve"?
—
Ela queria ter ficado na Terra! Queria não ter ido embora com aquele fresco imbecil descerebrado, o Zaphod! Ela acha que poderia ter tido uma vida diferente!
—
Mas — ponderou Arthur — ela teria morrido! Ela teria morrido quando o mundo foi destruído!
—
Não deixa de ser uma vida diferente, não é?
—
Não deixa de...
—
Ela não precisaria ter me deixado nascer! Ela me odeia! —Você não está
falando isso a sério! Como é que alguém, humm, quero dizer... — Ela me teve para se ajustar. Essa era a minha função. Mas eu sou muito menos ajustada do que ela! Então ela me desligou e continuou com a sua vidinha idiota.
—
O que tem de idiota na vida dela? Ela é terrivelmente bem-sucedida, não é? Está em todo o tempo e espaço, em todas as emissoras da rede subeta...
—
Idiota! Idiota! Idiota! Idiota!
Random se virou e saiu correndo de novo. Arthur não conseguiria alcançá-la e, por fim, acabou tendo que se sentar um pouco para esperar a dor na perna passar. Não tinha a menor idéia do que ia fazer com toda aquela confusão que estava em sua cabeça. Uma hora mais tarde ele voltou capengando para a cidade. Estava anoitecendo. Os aldeões que passaram por ele o cumprimentaram, mas havia no ar uma sensação de nervosismo e de não saber ao certo o que estava acontecendo e o que fazer com aquela sensação. Haviam visto o Velho Thrashbarg puxando a barba e contemplando a lua, o que também não era bom sinal.
Arthur voltou para sua cabana.
Random estava sentada debruçada sobre a mesa, quietinha.
—
Sinto muito — disse ela. — Sinto muito mesmo.
—
Tudo bem — respondeu Arthur, o mais delicadamente que pôde. — É
bom levar um papo, sabe? Ainda temos tanto a aprender e compreender um sobre o outro, e a vida não é, bem, não é feita somente de chá e sanduíches...
—
Sinto muito mesmo — repetiu ela, soluçando.
Arthur foi até ela e colocou o seu braço no ombro da filha. Ela não resistiu nem o rechaçou. Foi então que ele viu o que ela sentia muito.
Na mancha de luz produzida por uma lanterna lamuellana jazia o relógio de Arthur. Random havia arrancado a parte de trás com a lâmina da faca de espalhar manteiga e todos os dentes de engrenagem e as molas e as alavancas estavam espalhados em uma pequena poça de bagunça onde ela estivera remexendo as peças.
—
Eu só queria ver como funcionava — disse Random —, como é que as peças se encaixavam. Sinto muito! Não consigo encaixar de volta. Sinto muito, tanto, mas tanto mesmo! Não sei o que fazer. Eu vou consertar! Juro! Eu vou consertar!
No dia seguinte, Thrashbarg apareceu lá e disse várias coisas sobre Bob. Tentou exercer uma influência apaziguadora, convidando Random a deixar sua mente pairar no mistério inefável da lacraia gigante, mas Random disse que não existia nenhuma lacraia gigante e Thrashbarg ficou em um silêncio gélido e disse que ela seria jogada nas profundezas do infinito. Random disse ótimo, foi lá que eu nasci e, no dia seguinte, o pacote chegou.
A vida estava pródiga em acontecimentos.
Na verdade, quando o pacote chegou, entregue por uma sonda robótica que desceu do céu fazendo barulhos robóticos, ele trouxe consigo uma sensação, que gradualmente começou a permear todo o vilarejo, de que já havia acontecido coisas demais.
Não era culpa da pobre sonda robótica. Tudo o que queria era a assinatura de Arthur Dent, ou a sua impressão digital, ou até mesmo algumas lasquinhas de células da pele na sua nuca, e iria embora. Ficou parada no ar, esperando, sem saber direito o porquê daquele ressentimento todo. Enquanto isso, Kirp apanhou outro peixe com uma cabeça de cada lado, mas, ao examiná-lo de perto, viu que na verdade eram dois peixes cortados pela metade e costurados mal e porcamente, de modo que não só Kirp não conseguiu renovar o interesse por peixes de duas cabeças como acabou colocando a autenticidade do primeiro em dúvida. Apenas os pássaros pikka pareciam estar achando tudo perfeitamente normal.