A sonda robótica pegou a assinatura e se mandou. Arthur carregou o pacote para sua cabana e olhou para ele.
—
Vamos abrir! — sugeriu Random, que estava muito mais animada naquela manhã, agora que tudo à sua volta ficara completamente esquisito, mas Arthur não quis.
—
Por que não?
—
Não está endereçado a mim.
—
Es
tá, sim.
—
Não está, não. Está endereçado para... bem, está endereçado para Ford Prefect, aos meus cuidados.
—
Ford Prefect? Não foi ele quem...
—
Foi — respondeu Arthur, secamente.
—
Já ouvi falar nele.
—
Imagino que sim.
—
Vamos abrir mesmo assim. O que mais vamos fazer com isso?
—
Não sei — disse Arthur, que realmente não sabia. Tinha levado as suas facas danificadas à ferraria de manhã cedo, e Strinder as examinara e dissera que ia ver o que podia fazer.
Tentaram a rotina de sempre de sacudir as facas no ar, calculando o ponto de equilíbrio e o ponto de flexibilidade, etc. e tal, mas a alegria tinha ido embora e Arthur ficara com a triste impressão de que seus dias como fazedor de sanduíches estavam contados.
Ele abaixou a cabeça.
A próxima aparição das Bestas Perfeitamente Normais era iminente, mas Arthur sentia que as tradicionais festividades de caça e organização de banquetes seriam meio desanimadas e sem convicção. Algo acontecera em Lamuella, e Arthur tinha uma sensação horrível de que fora culpa dele.
—
O que você acha que é? — perguntou Random, curiosa, girando o pacote em suas mãos.
—
Eu não sei — respondeu Arthur. — Algo ruim e preocupante, com certeza.
—
Como é que você sabe? — protestou Random.
—
Porque tudo relacionado a Ford Prefect é invariavelmente pior e mais preocupante do que qualquer outra coisa. Acredite em mim.
—
Você está chateado com alguma coisa, não está? — perguntou Random. Arthur suspirou.
—
Acho que só estou meio sobressaltado e inquieto — disse Arthur.
—
Sinto muito — disse Random, devolvendo o pacote. Percebeu que ele ia ficar realmente chateado se ela abrisse. Ia ter que dar um jeito de fazer isso quando ele não estivesse olhando.
CAPÍTULO 16
Arthur não sabia ao certo do que sentira falta primeiro. Quando percebeu que um não estava lá, sua mente instantaneamente pulou para o outro e ele soube imediatamente que ambos haviam desaparecido e que algo terrivelmente ruim e difícil de se lidar iria acontecer. Random não estava lá. Nem o pacote. Tinha deixado-o em cima de uma prateleira o dia inteiro, totalmente à vista. Fora um exercício de confiança.
Sabia que uma das coisas que deveria fazer como pai era demonstrar confiança na filha, construir um sentimento de respeito mútuo e fé no alicerce do relacionamento deles. Tinha uma sensação desagradável de que aquela era uma coisa idiota para se fazer, mas fez assim mesmo e, de fato, havia sido uma coisa idiota a se fazer. Vivendo e aprendendo. Ou só vivendo.
E entrando em pânico.
Arthur saiu correndo da cabana. Era final de tarde. A luz estava ficando fraca e ia cair uma tempestade. Não conseguia ver a menina em lugar algum, não havia sinal dela. Perguntou. Ninguém tinha visto Random. Perguntou novamente. Mais ninguém tinha visto Random. As pessoas estavam voltando para casa para passar a noite. Um ventinho açoitava os limites da cidade, levantando as coisas do chão e as jogando longe de maneira perigosamente casual.
Encontrou com o Velho Thrashbarg e perguntou pela menina. Ele o olhou friamente e apontou na direção que Arthur mais temia e que, portanto, deduzira instintivamente que devia ser a que ela tomara.
Então agora já sabia o pior.
Random tinha ido para o lugar que sabia que ele não iria segui—la. Olhou para o céu, que estava pesado, cor de chumbo e entrecortado por raios, e refletiu que seria um céu perfeito para os Quatro Cavalheiros do Apocalipse. Com um profundo sentimento de mau agouro, ele partiu na trilha que conduzia à floresta no vale seguinte. As primeiras gotas pesadas de chuva começaram a atingir o chão enquanto Arthur tentava se arrastar em uma corrida desajeitada. Random alcançou o topo da colina e olhou para baixo, para o vale seguinte. A subida fora mais longa e difícil do que imaginara. Estava um pouco preocupada porque fazer aquela caminhada à noite não era uma boa idéia, mas seu pai passara o dia inteiro perambulando do lado de fora da cabana tentando fingir para ela ou para si mesmo que não estava vigiando o pacote. Finalmente teve que ir até a ferraria conversar com Strinder sobre as facas — e Random havia aproveitado a oportunidade para sumir com o embrulho.
Era óbvio que não podia abri-lo ali, na cabana, nem mesmo na vila. Arthur poderia flagrá-la a qualquer momento. Teria que ir para um lugar onde ele não a seguisse.
Já podia parar onde estava. Caminhara bastante, na esperança de que ele não fosse atrás dela e, mesmo que fosse, jamais a encontrasse na vegetação densa da colina com a noite caindo e a chuva começando a pingar.
Durante toda a subida, o pacote balançara debaixo do seu braço. Era algo prazerosamente encorpado: uma caixa com uma tampa quadrada, com a largura do tamanho do seu antebraço e altura do tamanho da sua mão, embrulhada num papel pardo com um novo modelo de barbante auto-amarrante. Não chacoalhava quando ela sacudia, fazendo Random ter a impressão de que o peso estava animadoramente concentrado no meio.
Já tendo caminhado até aquele ponto, sentia uma certa satisfação em não parar ali e carregar o pacote até lá embaixo, onde parecia ser a área proibida — o lugar em que a nave do seu pai caíra. Não sabia ao certo o que a palavra "mal-assombrada" significava, mas ia ser divertido descobrir. Continuaria caminhando e só abriria o embrulho quando chegasse lá embaixo.
O problema é que estava realmente escurecendo. Ainda não usara a sua microlanterna elétrica porque não queria ser vista a distância. Estava na hora de usá-la, o que provavelmente não teria mais problema, já que estava do outro lado da colina que dividia os vales.
Acendeu a lanterna. Praticamente na mesma hora um raio ziguezagueou no céu sobre o vale para o qual estava se dirigindo, o que a deixou consideravelmente assustada. Quando a escuridão a envolvia e o estrondo do trovão sacudia a terra, ela se sentiu subitamente pequena e perdida, com apenas um frágil facho de luz, do tamanho de um lápis, bruxuleando em sua mão. Talvez fosse melhor parar de uma vez e abrir logo o pacote. Ou talvez devesse voltar para casa e tentar refazer o caminho no dia seguinte. Mas foi apenas uma hesitação momentânea. Sabia que não tinha como voltar para casa naquela noite e sentiu que não poderia voltar nunca mais. Desceu a encosta da colina. A chuva estava apertando. As pesadas gotas transformaram—se rapidamente num aguaceiro pesado, sibilando por entre as árvores. O chão estava começando a ficar escorregadio sob os seus pés. Pelo menos ela achava que era a chuva que estava produzindo um som sibilante entre as árvores. Sombras saltavam e olhavam para ela de soslaio enquanto a lanterna tremelicava na floresta, para a frente e para baixo. Continuou seguindo sem parar por uns dez ou quinze minutos, encharcada até
os ossos e tremendo de frio, e, gradualmente, foi percebendo que parecia haver uma outra luz em algum lugar mais adiante. A luminosidade era muito fraquinha e Random não sabia se estava imaginando coisas. Apagou a sua lanterna para ver. Realmente parecia haver uma luz fraca mais à frente. Não conseguiu distinguir o que era. Acendeu a lanterna novamente e continuou a descer a colina, na direção da luz, fosse lá o que fosse.