Random piscou os olhos duas vezes antes de compreender o que era aquilo. Era um comercial. O sujeito que atirara nela fazia parte da imagem holográfica de um dos filmes transmitidos na nave. Devia estar bem próxima do local da queda. Obviamente, alguns dos sistemas a bordo eram mais indestrutíveis do que os outros. O meio quilômetro seguinte da jornada foi especialmente problemático. Não só
tinha que lutar contra o frio, a chuva e a noite como ainda tinha que lidar com os vestígios fragmentados e semidestruídos do sistema de entretenimento de bordo. Naves espaciais, carros a jato e helipods colidiam e explodiam continuamente à sua volta, iluminando a noite, pessoas malvadas usando chapéus esquisitos contrabandeavam drogas perigosas através dela e a orquestra e o coro da Ópera de Hallapolis executavam o último movimento da Marcha da Guarda Estelar de AnjaQantine, do ato IV da Blamwellamum de Woont de Rizgar, em uma pequena clareira localizada em algum lugar à sua esquerda.
E então se viu parada na beira de uma cratera horrenda de bordas espumantes. Ainda havia um leve brilho quente vindo do que parecia ser um enorme pedaço de chiclete caramelizado no meio do poço: os destroços derretidos de uma grande nave espacial.
Ficou parada lá, observando por um bom tempo, e depois, finalmente, começou a caminhar pela borda da cratera. Não sabia mais para o que estava olhando, mas continuava andando mesmo assim, evitando o horror do abismo à sua esquerda. A chuva estava começando a diminuir um pouco, mas tudo continuava extremamente molhado e, já que ela não sabia o que havia no pacote, se era algo delicado ou frágil, imaginou que o melhor a fazer seria encontrar um lugar seco para abri-lo. Torcia para não ter causado nenhum estrago quando o deixou cair no chão. Girou a lanterna, examinando as poucas, carbonizadas e quebradas árvores que a cercavam. Não muito longe dali, avistou o afloramento de uma rocha que talvez lhe oferecesse um abrigo e começou a andar em sua direção. Ã sua volta, deparou—se com os detritos que haviam sido ejetados da nave durante a queda, antes da última bola de fogo.
Após ter se afastado duzentos ou trezentos metros da borda da cratera, Random viu os fragmentos esfarrapados de um material rosa macio, encharcado, coberto de lama, dependurado entre as árvores partidas. Imaginou, corretamente, que deviam ser os vestígios do casulo de fuga que salvara a vida do seu pai. Aproximou-se para examinar de perto e foi então que percebeu uma coisa no chão, imunda de lama. Apanhou e tirou a sujeira. Era uma espécie de aparelho eletrônico, do tamanho de um livro pequeno. Quando o tocou, surgiram amistosas letras garrafais que brilhavam fracamente em seu centro. Diziam: NÃO ENTRE EM PÂNICO. Sabia o que era aquilo. Era a cópia do Guia do Mochíleiro das Galáxias do seu pai. Aquilo tranqüilizou-a instantaneamente. Olhou para o céu trovejante e deixou que a chuva esparsa molhasse o seu rosto, entrando na sua boca. Balançou a cabeça e correu em direção às pedras. Escalando-as, encontrou quase que imediatamente o lugar perfeito. A entrada de uma caverna. Examinou seu interior com a lanterna. Parecia seco e seguro. Cuidadosamente, ela entrou. Era bastante espaçosa, mas não muito profunda. Exausta e aliviada, Random sentou—se em uma pedra confortável, apoiou o pacote no chão e começou a abri-lo imediatamente. CAPÍTULO 17
Durante um bom período de tempo houve muita especulação e controvérsia sobre onde tinha ido parar a chamada "matéria perdida" do universo. Por toda a Galáxia, os departamentos de ciências das universidades mais conceituadas estavam adquirindo equipamentos cada vez mais elaborados para sondar e vasculhar o núcleo de galáxias distantes e, depois, o próprio núcleo e as margens de todo o universo. Quando finalmente chegaram a uma conclusão, descobriram que, na verdade, o que estavam procurando era exatamente o material que servia para embalar os tais equipamentos. Havia uma quantidade enorme de matéria perdida naquele pacote. Pequenas bolinhas redondas e fofas que Random deixou para as futuras gerações de físicos tentarem rastrear e descobrir novamente, assim que os achados da geração atual tivessem sido perdidos e esquecidos.
De dentro das bolinhas de matéria perdida, Random tirou um disco negro e liso. Ela o colocou sobre uma pedra ao seu lado e vasculhou todo o resto da matéria perdida na caixa para verificar se havia mais alguma coisa lá dentro, um manual, alguns acessórios ou algo assim, mas não havia mais nada. Só o disco negro. Apontou sua lanterna para ele.
Assim que fez isso, começaram a surgir rachaduras ao longo da superfície aparentemente lisa. Random recuou, nervosa, mas então percebeu que a coisa, fosse lá o que fosse, estava apenas se desdobrando.
O processo era maravilhosamente bonito. Era extraordinariamente elaborado, mas simples e elegante ao mesmo tempo. Era como um origami automático, ou um botão de rosa florescendo em apenas alguns segundos.
Onde apenas alguns momentos antes havia um disco negro e liso havia agora um pássaro. Um pássaro pairando no ar.
Random continuou a recuar, cuidadosa e atenta.
Parecia-se com um pássaro pikka, só que era um pouco menor. Quer dizer, na verdade era maior ou, para ser mais exato, tinha exatamente o mesmo tamanho ou, no mínimo, não menos que o dobro. Também era muito mais azul e muito mais rosado do que os pássaros pikka, sendo ao mesmo tempo perfeitamente negro. Havia algo muito estranho naquele pássaro, mas Random não conseguiu perceber de imediato o que era.
Certamente, compartilhava com os pássaros pikka a impressão de que estava vendo algo que ninguém mais via.
De repente, ele desapareceu.
Depois, igualmente de repente, tudo ficou escuro. Random agachou-se, assustada, apalpando a pedra afiada em seu bolso novamente. Então a escuridão recuou, transformou—se em uma bola e, em seguida, voltou a ser aquele pássaro. Ficou suspenso no ar diante dela, batendo as suas asas lentamente, observando-a.
—
Com licença — disse ele, de repente. — Eu só preciso me calibrar. Você
consegue ouvir isso que estou dizendo?
—
Isso o quê? — perguntou Random.
—
Ótimo — disse o pássaro. — E consegue ouvir isso também? — Dessa vez, falou com uma voz mais esganiçada.
—
Claro que sim! — disse Random.
—
E quando eu digo isso? — perguntou ele, usando um tom de voz sepulcralmente grave.
—
Sim!
Houve uma pausa.
—
Não, é claro que não — disse o pássaro, alguns segundos depois. —
Maravilha, bem, a sua faixa de audição está obviamente entre 20 e 16 KHz. Então. Assim está confortável para você? — perguntou ele, em uma agradável voz de tenor. —
Não há harmônicos desconfortáveis arranhando no registro superior? Obviamente, não. Ótimo. Posso usar esses harmônicos como canais de dados. Agora, quantos de mim você consegue ver?
De repente, o ar ficou lotado com um emaranhado de pássaros. Random estava mais do que acostumada a passar seu tempo em realidades virtuais, mas aquilo era infinitamente mais estranho do que qualquer coisa que ela já tivesse visto antes. Era como se toda a geometria do espaço estivesse sendo redefinida em formas contínuas de pássaros.
Random engoliu em seco e sacudiu os braços ao redor de seu rosto, movendoos naquele espaço formado por pássaros.
—
Hummm, obviamente muitos — disse o pássaro. — E agora?
Ele se desdobrou em um túnel de pássaros, como se fosse um pássaro capturado entre espelhos paralelos, refletindo infinitamente a distância.