—
O que é você? — gritou Random.
—
Vamos chegar nisso, já, já — respondeu o pássaro. — Só me diga quantos, por favor?
—
Bem, você é mais ou menos... — Random esticou os braços, em um gesto vago.
—
Sei, ainda infinito em extensão, mas pelo menos estamos chegando à
matriz dimensional certa. Ótimo. Não, a resposta é uma laranja e dois limões.
—
Limões?
—
Se eu tenho três limões e três laranjas e perco duas laranjas e um limão, o que me resta?
—
Hein?
—
Está bem, então você acha que o tempo flui dessa maneira, não é?
Interessante. Ainda estou infinito? — perguntou ele, flutuando para cá e para lá no ar.
— Continuo infinito agora? Estou muito amarelo?
O pássaro estava passando por sucessivas transformações enlouquecedoras de forma e de tamanho.
—
Eu não consigo... — disse Random, desnorteada.
—
Não precisa responder, eu sei só de observar você agora. Então. Sou a sua mãe? Sou uma pedra? Pareço imenso, fofinho e sinuosamente entrelaçado? Não? E
agora? Estou recuando?
Finalmente o pássaro estava imóvel e quietinho.
—
Não — respondeu Random.
—
Bem, na verdade eu estava recuando no tempo, sim. Humm. Bem, acho que já resolvemos isso. Se você quiser saber, posso lhe contar que no seu universo é
possível se movimentar livremente nas três dimensões que vocês chamam de espaço. Vocês se movem em linha reta numa quarta dimensão, a que chamam de tempo, e ficam estáticos em uma quinta, que é a primeira fundamental da probabilidade. Depois disso, a coisa fica um pouco complicada e acontece virtualmente de tudo nas dimensões treze à
vinte e dois, nem queira saber. Tudo o que você precisa saber por enquanto é que o universo é muito mais complicado do que você pode imaginar, mesmo se você já
imagina que ele é complicado pra cacete, para começar. Posso evitar palavras como
"cacete", se isso te ofender.
—
Pode falar o que quiser.
—
Es tá bem.
—
Que diabos é você? — perguntou Random.
—
Eu sou o Guia. No seu universo, sou o seu Guia. Na verdade, habito o que é tecnicamente conhecido como a Mistureba Generalizada de Todas as Coisas, que significa... bom, é melhor te mostrar.
O pássaro virou-se em pleno ar e voou para fora da caverna. Empoleirou—se em uma pedra, logo abaixo de uma marquise natural, fora da chuva, que estava voltando a ficar forte.
—
Venha até aqui — disse ele — e veja isso.
Random não gostava de receber ordens de um pássaro, mas o seguiu mesmo assim até a entrada da caverna, apalpando a pedra que estava em seu bolso.
—
Chuva — disse o pássaro. — Está vendo? Apenas chuva.
—
Eu sei o que é chuva.
Torrentes de chuva assolavam a noite, a luz do luar filtrada pelos pingos.
—
Então o que é chuva?
—
Como assim, o que é chuva? Olha só, quem é você? O que você estava fazendo dentro da caixa? Por que tive que passar uma noite inteira correndo pela floresta, espantando esquilos retardados para, no final das contas, ter que aturar um pássaro me perguntando se eu sei o que é chuva? É água caindo pela droga do ar, pronto. Mais alguma coisa que você queira saber ou já podemos ir para casa?
Após uma longa pausa, o pássaro respondeu:
—
Você quer ir para casa?
—
Eu não tenho casa! — Random berrou as palavras tão alto que quase assustou a si mesma.
—
Olhe para a chuva... — disse o pássaro—Gwza.
—
Estou olhando para a chuva! O que mais tem para olhar?
—
O que você está vendo?
—
Como assim, seu pássaro idiota? Estou vendo um monte de chuva. É
apenas água caindo.
—
Que formas você vê na água?
—
Formas? Não tem forma nenhuma. É só uma... uma...
—
Só Uma Mistureba Generalizada — completou o pássaro—Guia. —É...
—
E agora, o que você está vendo?
Quase no limite da visibilidade, um feixe tênue e fino transbordou dos olhos do pássaro. No ar seco, protegido pela marquise, não se via nada. Mas nos pontos onde o raio atingia os pingos de chuva conforme caíam havia uma lâmina de luz tão brilhante e viva que parecia sólida.
—
Uau, que ótimo. Um show de lasers — comentou Random, debochada.
— Nunca vi um desses antes, é claro, só em uns cinco milhões de shows de rock.
—
Diga—me o que você está vendo!
—
Apenas uma lâmina plana! Pássaro burro.
—
Não há nada ali que não estivesse ali antes. Só estou usando a luz para chamar a sua atenção para determinados pingos, em determinados momentos. E, agora, o que está vendo?
A luz se apagou.
—
Nada.
—
Continuo fazendo a mesma coisa, só que com luz ultravioleta, que você não consegue ver.
—
E de que adianta me mostrar uma coisa que eu não consigo ver?
—
Para que você entenda que só porque consegue ver uma coisa não quer dizer que ela esteja lá. E que, se você não vê uma coisa, não significa que ela não esteja. Tudo se resume ao que seus sentidos fazem com que você note.
—
Estou de saco cheio disso — disse Random. Logo em seguida levou um susto.
Pairando sob a chuva estava uma imagem tridimensional gigante, bem nítida, do seu pai olhando com cara de bobo para alguma coisa.
Umas duas milhas atrás de Random, seu pai, abrindo caminho pelos bosques, parou de repente. Ficou perplexo ao ver uma imagem dele próprio parecendo perplexo com alguma coisa flutuando nitidamente sob a chuva, a uns três quilômetros de distância. A uns três quilômetros de distância, à direita da direção para a qual estava caminhando.
Estava quase completamente perdido, convencido de que ia morrer por conta do frio, da chuva e da exaustão, e começando a desejar que tudo terminasse logo. Para completar, um esquilo acabara de lhe trazer uma revista de golfe intacta, o que fez com que o seu cérebro começasse a uivar e gralhar.
Ao ver uma imagem enorme e nítida de si mesmo iluminada no céu, convenceu
—se, por outro lado, que provavelmente estava certo quanto a uivar e gralhar, mas errado quanto à direção.
Respirando bem fundo, ele se virou e seguiu em direção ao inexplicável show de luz.
—
Está bem, mas isso prova o quê? — perguntou Random. O fato de a imagem ser do seu pai assustou-a mais do que a aparição da imagem em si. Vira o primeiro holograma quando tinha dois meses de idade e fora colocada para brincar dentro dele. O mais recente tinha sido há meia hora, tocando a Marcha da Guarda Estrelar de AnjaQantine.
—
Apenas que não estava nem mais nem menos lá do que a lâmina estava
— respondeu o pássaro. — É apenas uma interação da água que cai do céu, movendo—
se em uma direção, com luzes cujas freqüências podem ser detectadas pelos seus sentidos, movendo—se em outra. Isso cria uma imagem aparentemente sólida na sua mente. Mas não passam de imagens na Mistureba Generalizada. Aqui vai mais uma para você.
—
Minha mãe! — exclamou Random.
—
Não — disse o pássaro.
—
Eu reconheço a minha mãe quando a vejo!
A imagem era a de uma mulher saindo de uma nave espacial e entrando em um prédio enorme e cinzento, parecido com um hangar. Ela estava sendo escoltada por um grupo de criaturas altas, magras e roxo-esverdeadas. Era definitivamente a mãe de Random. Bem, quase definitivamente. Trillian não estaria andando tão insegura em baixa gravidade, ou examinando um tedioso e velho ambiente de suporte de vida à sua volta com um olhar tão incrédulo, nem muito menos carregando uma estranha câmera velha.