—
Então quem é ela? — perguntou Random.
—
Ela faz parte de uma extensão da sua mãe no eixo da probabilidade —
respondeu o pássaro— Guia.
—
Não faço a menor idéia do que você está falando.
—
O espaço, o tempo e a probabilidade possuem eixos dentro dos quais é
possível mover—se.
—
Ainda continuo boiando. Se bem que... Não. Pode explicar.
—
Pensei que você quisesse ir para casa.
—
Explica!
—
Você gostaria de ver a sua casa?
—
Ver? Ela foi destruída!
—
Dentro do eixo da probabilidade permanece descontínua. Veja só!
Algo muito estranho e incrível surgiu flutuando na chuva. Era um globo azulesverdeado, enevoado e coberto de nuvens, girando com majestosa lentidão contra um pano de fundo negro e estrelado.
—
Agora você vê — disse o pássaro. — Agora não vê mais.
A pouco menos de três quilômetros, Arthur Dent estacou. Não podia acreditar que estava vendo, boiando no ar, coberta pela chuva, porém nítida e vividamente real, contra o céu da noite, a Terra. Ficou sem ar ao vê-la. Então, no momento em que ficou sem ar, ela desapareceu novamente. Depois tornou a aparecer. Depois, e foi isso que fez com que ele ficasse doido de pedra, ela se transformou em uma salsicha. Random estava igualmente impressionada com a visão daquela gigantesca salsicha azul e verde, aquosa e nevoenta, flutuando sobre ela. Transformou-se depois em uma fileira de salsichas, ou melhor, uma fileira de salsichas na qual faltavam várias salsichas. A brilhante fileira rodopiou e girou em um balé desconcertante no ar, depois diminuiu gradualmente o ritmo, enfraqueceu—se e desapareceu na escuridão cintilante da noite.
—
O que foi isso? — perguntou Random, com a voz fraca.
—
Uma breve visão do eixo de probabilidade de um objeto descontinuamente provável.
—Ah.
—
A maioria dos objetos sofre mudanças e alterações ao longo do seu eixo de probabilidade, mas o mundo do qual você veio faz algo um pouquinho diferente. Ele se encontra no que poderíamos chamar de uma rachadura na paisagem da probabilidade, o que significa que, em diversas coordenadas de probabilidade, ele simplesmente deixa de existir. Ele possui uma instabilidade inerente, típica de qualquer coisa que faça parte do que é comumente chamado de Setores Plurais. Entendeu?
—
Não.
—
Quer ir até lá e ver por conta própria?
—
Para a... Terra?
—
É.
—
E isso é possível?
O pássaro-Guia não respondeu de imediato. Abriu as asas e, com uma graça sem esforço, ergueu-se no ar e voou para a chuva, que estava enfraquecendo novamente. Planou em êxtase sobre o céu noturno; luzes piscaram à sua volta e dimensões trepidavam com sua passagem. Mergulhou, girou, subiu novamente, tornou a girar e, finalmente, aquietou—se bem próximo do rosto de Random, batendo as asas lenta e silenciosamente. Continuou a falar com ela.
—
Seu universo é vasto para você. Vasto em tempo, vasto em espaço. Isso se deve aos filtros através dos quais você o percebe. Mas eu fui construído sem filtros, o que significa que percebo a Mistureba Generalizada que contém todos os universos possíveis mas que não tem, por si mesma, tamanho algum. Para mim tudo é possível. Sou onisciente e onipotente, extremamente vaidoso e, o melhor, venho em uma embalagem prática e portátil. Você precisa descobrir o quanto essas afirmações são verdadeiras.
Random abriu um sorriso suave.
—
Seu monstrinho. Você está me enrolando!
—
Como eu disse, tudo é possível.
Random soltou uma gargalhada.
—
Está bem — disse ela. — Vamos tentar ir para a Terra. Vamos tentar ir para a Terra em algum ponto do seu, ah...
—
Eixo de probabilidade?
—
Isso. Onde ela não foi destruída. O.k. Então você é o Guia. Como conseguimos uma carona?
—
Engenharia reversa.
—
O quê?
—
Engenharia reversa. Para mim, o fluxo do tempo é irrelevante. Você
decide o que quer. Depois eu meramente garanto que já tenha acontecido.
—
Você está brincando.
—
Tudo é possível.
Random franziu a testa.
—
Você está brincando, não está?
—
Deixe-me explicar de outra maneira — disse o pássaro. — A engenharia reversa nos permite pular toda aquela burocracia de ter que esperar que uma das raríssimas naves espaciais que passam pelo seu setor galáctico cerca de uma vez por ano resolva se está ou não a fim de lhe dar uma carona. Você quer uma carona, uma nave aparece e lhe dá uma. O piloto pode até achar que tem alguns milhões de motivos para decidir parar e lhe dar uma carona. Mas o verdadeiro motivo é que eu determinei que ele parasse.
—
Isso é uma amostra da sua extrema vaidade, não é, pequeno pássaro?
O pássaro ficou em silêncio.
—
Está bem — disse Random. — Eu quero uma nave que me leve para a Terra.
—
Serve essa aqui?
Foi tão silencioso que Random só notou que havia uma nave espacial aterrissando quando já estava praticamente sobre a sua cabeça. Arthur também notou a nave. Ele estava a pouco menos de dois quilômetros de distância agora. Após a exibição das salsichas iluminadas ter chegado ao fim, ele percebera tênues lampejos de outras luzes descendo das nuvens e imaginou, no início, que fossem outra parte do espetáculo de son et lumière.
Levou alguns segundos para concluir que era uma nave espacial de verdade e mais alguns segundos para concluir que estava aterrissando exatamente no local onde ele imaginava que a sua filha estava. Foi então que, com chuva ou sem chuva, com perna machucada ou sem perna machucada, com breu ou sem breu, ele começou realmente a correr.
Caiu quase que imediatamente, escorregou e machucou o joelho em uma pedra. Levantou—se novamente com muito esforço e tentou continuar em frente. Teve a horrível sensação de que estava prestes a perder Random para sempre. Correu, mancando e xingando. Não sabia o que havia naquela caixa, mas o nome no pacote era o de Ford Prefect e era esse o nome que ele xingava enquanto corria. A nave era a mais sexy e bonita que Random já havia visto.
Era impressionante. Prateada, esguia, inefável.
Se não fosse impossível, diria que era uma RW6. Quando a nave pousou silenciosa ao seu lado, percebeu que era de fato uma RW6 e ficou sem ar de tão empolgada. Uma RW6 era uma daquelas naves só encontradas em revistas criadas para provocar agitação civil.
Random também estava extremamente nervosa. O timing e a forma como a nave tinha chegado eram perturbadores. Ou aquela era a coincidência mais bizarra do mundo ou algo muito peculiar e preocupante estava acontecendo. Esperou, um pouco tensa, a nave abrir a sua escotilha. O seu Guia — ela o tinha como seu agora — estava suspenso no ar, um pouco acima do seu ombro direito, quase sem bater as asas. A escotilha se abriu. Uma luz fraquinha vazou lá de dentro. Passados alguns segundos, uma figura apareceu. Ficou parada por alguns segundos, obviamente tentando acostumar seus olhos à escuridão. Então avistou Random parada um pouco mais adiante e pareceu um tanto surpresa. Começou a caminhar até a garota. Então, de repente, soltou um grito de espanto e começou a correr na direção dela.