—
Tudo bem — disse ele. — Pense nisso. Você sabe quem eu acho que vi nos escritórios do Guia? Vogons. Ahá! Finalmente uma palavra que você sabe o que é. Arthur levantou-se num salto.
—
Esse barulho — disse ele.
—
Que barulho?
—
O trovão.
—
O que é que tem?
—
Não é um trovão. É a migração de primavera das Bestas Perfeitamente Normais. Já começou.
—
O que são esses animais de que você é fã?
—
Eu não sou fã. Eu apenas coloco pedaços deles nos meus sanduíches.
—
E por que são chamados de Bestas Perfeitamente Normais?
Arthur contou para ele.
Não era todos os dias que Arthur tinha o prazer de ver os olhos de Ford se arregalarem de surpresa.
CAPÍTULO 19
Era uma visão à qual Arthur nunca se acostumava nem tampouco se cansava. Ele e Ford haviam trilhado o caminho rapidamente pela margem de um pequeno rio que desembocava no leito do vale e, quando finalmente alcançaram a beira das planícies, escalaram os galhos de uma árvore frondosa para conseguirem um panorama melhor de uma das visões mais estranhas e fantásticas que a Galáxia tinha a oferecer. A imensa horda ensurdecedora de milhares e milhares de Bestas Perfeitamente Normais deslizava veloz, em uma formação imponente, pela Planície de Anhondo. Na pálida luz do amanhecer, conforme os imensos animais investiam e o leve vapor do seu suor se mesclava com a névoa enlameada oriunda dos seus cascos trepidantes, pareciam levemente mais irreais e fantasmagóricos. O mais impressionante, contudo, era de onde vinham e para onde iam, que parecia ser, simplesmente, de lugar nenhum para lugar algum.
Formavam uma falange sólida, de uns cem metros de largura e meio quilômetro de extensão. A falange não se movia, exibindo apenas uma leve oscilação para o lado e para trás durante os oito ou nove dias em que costumava aparecer. Mas, embora permanecesse mais ou menos fixa, as grandes bestas que a formavam galopavam com uma constância regular, a mais de quarenta quilômetros por hora, aparecendo do nada em um dos cantos da planície e desaparecendo, de modo igualmente abrupto, no outro.
Ninguém sabia de onde surgiam nem para onde iam. Mas eram tão importantes para a vida dos lamuellanos que ninguém se dava ao trabalho de perguntar. O Velho Thrashbarg disse, tempos atrás, que, algumas vezes, se você obtém uma resposta é
possível que a pergunta seja suprimida. Alguns moradores comentaram entre si que havia sido a única coisa realmente sábia que tinham ouvido de Thrashbarg e, após uma breve discussão sobre o assunto, deixaram a coisa de lado.
O barulho dos cascos era tão alto que era difícil conseguir escutar qualquer outra coisa.
—
O que você disse? — gritou Arthur.
—
Eu disse — gritou Ford — que isso pode ser uma evidência de alguma flutuação dimensional.
—
O que é isso? — gritou Arthur de volta.
—
Bem, várias pessoas estão começando a se preocupar com a possibilidade do espaço-tempo estar dando sinais de que vai rachar de vez, por causa de tudo o que está acontecendo com ele. Na verdade existem diversos mundos onde é possível ver como as massas terrestres racharam e se moveram apenas olhando para as curiosamente longas ou sinuosas rotas dos animais migratórios. Isso pode ter alguma coisa a ver com isso. Vivemos em uma época contorcida. Ainda assim, na falta de um espaçoporto decente...
Arthur lançou um olhar paralisado para ele.
—
O que você quer dizer com isso? — perguntou ele.
—
O que você quer dizer com o que quero dizer com isso? — gritou Ford.
—
Você sabe muito bem o que quero dizer. Vamos sair daqui a galope.
—
Você está sugerindo que a gente tente montar em uma Besta Perfeitamente Normal?
—
Isso aí. Vamos ver no que dá.
—
Vamos morrer! Não — disse Arthur, de repente. — Não vamos morrer. Pelo menos, eu não. Ford, você já ouviu falar de um planeta chamado Stavromula Beta?
Ford franziu a testa.
— Acho que não — respondeu ele. Sacou a sua cópia surrada do Guia do Mochileiro das Galáxias e a consultou. — Escreve como se fala? —perguntou.
—
Não sei. Nunca vi escrito e quem me falou estava com a boca cheia de dentes de outras pessoas. Lembra que eu te contei sobre o Agrajag?
Ford parou para pensar.
—
O carinha que cismou que você ficava matando ele sem parar?
—
Isso. Um dos lugares que ele alegou que eu o matara era Stavromula Beta. Parece que alguém tenta atirar em mim. Eu me abaixo e Agrajag, ou uma das suas muitas reencarnações, é atingido. Parece que isso realmente aconteceu em algum momento, então, creio eu, não posso morrer até escapar do tiro em Stavromula Beta. O
problema é que ninguém ouviu falar nesse lugar.
—
Humm. — Ford fez mais algumas consultas no seu Guia, mas foram em vão. — Eu estava aqui pensando... não, nunca ouvi falar — disse ele, finalmente. Mas estava intrigado por achar que o nome lhe dizia alguma coisa.
—
Está bem — respondeu Arthur. — Eu vi como os caçadores lamuellanos capturam as Bestas Perfeitamente Normais. Se você ataca uma em meio à horda, ela é
pisoteada, então você tem que dar um jeito de atrair uma a uma para matá-las. É mais ou menos como um toureiro faz, sabe, com uma capa colorida bem chamativa. Você faz com que uma delas parta para cima de você, aí dá aquele passinho para o lado e gira a capa de forma elegante. Você tem alguma coisa que possamos usar como uma capa colorida bem chamativa?
—
Serve isso? — perguntou Ford, entregando a sua toalha.
CAPÍTULO 20
Pular nas costas de uma Besta Perfeitamente Normal de uma tonelada e meia migrando pelo seu mundo a estrondosos quarenta quilômetros por hora não é algo tão fácil quanto possa parecer. Certamente, não tão fácil quanto os caçadores lamuellanos faziam parecer, e Arthur Dent já estava preparado para descobrir que aquela talvez acabasse sendo a parte difícil.
O que não estava preparado para descobrir, no entanto, era que até mesmo chegar na parte difícil já era difícil. Isso porque a parte que supostamente deveria ser fácil era praticamente impossível.
Não conseguiam chamar a atenção de um animal sequer. As Bestas Perfeitamente Normais eram tão obstinadas em produzir um bom estrondo com os seus cascos — cabeças abaixadas e ombros projetados para a frente, patas traseiras transformando o chão em mingau — que precisavam de algo não só meramente surpreendente, mas geológico para chamar a sua atenção.
Os estrondos ensurdecedores e o tempo de espera acabaram sendo, no final das contas, mais do que Arthur e Ford podiam suportar. Após passarem quase duas horas zanzando para lá e para cá e fazendo coisas cada vez mais estapafúrdias com uma toalha de banho média com padrões florais, não haviam sequer conseguido que uma das grandes bestas que esmagavam estrondosamente o chão desse pelo menos uma olhadela de soslaio na direção deles.
Estavam a mais ou menos um metro da avalanche horizontal de corpos suados. Ficar mais perto significava um risco de morte instantânea, cronológica ou não cronológica. Arthur já havia visto o que sobrava de qualquer Besta Perfeitamente Normal que, graças a um lançamento desajeitado de um caçador lamuellano jovem e inexperiente, era atingida por uma lança enquanto ainda esmagava estrondosamente o chão no meio do bando.
Bastava um único tropeção. Nenhum compromisso anterior com a morte em Stavromula Beta — fosse lá onde diabos ficasse Stavromula Beta — poderia salvar a sua vida ou a de qualquer outra pessoa da marcha ribombante e estraçalhadora daqueles cascos.