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Outra vez. Sexo e dinheiro. Pare de pensar em sexo e dinheiro. Principalmente em dinheiro. É horrível estar aqui com essa mulher incrível e só conseguir pensar no preço da xícara de café. E em sexo.

— Estou morrendo de fome — diz ela. — Vamos fazer um lanche? Uma batata frita ou algo assim?

— Perfeito! — concordo e consulto o cardápio. Pagar 1,25 libra por uma travessinha de batata frita?

— ...Na verdade, não estou com muita fome, mas pode pedir.

Ela acena para o garçom, um magricela com topete de Jim Morrissey e, pelo jeito, também estudante, e ele vem e cumprimenta Alice com um sincero e amigável  E aí?! por cima da minha cabeça.

— Olá! Como estamos hoje?

— Tudo bem. Mas eu preferia não estar aqui. Turno dobrado.

— Oh, Deus. Coitado de você! — diz ela, tocando o braço dele em solidariedade.

— E você, tudo bem? — pergunta o garçom.

— Tudo bem, obrigada.

— Você está muito bonita, se me permite.

— Ah, puxa! — diz Alice cobrindo o rosto com as mãos.

Zut alors.

— Então, o que vai querer? — pergunta ele, afinal, lembrando a razão de estar ali.

— Pode ser uma porção de pommes frites?

— Absolument! — confirma o garçom, e meio que corre até a cozinha para preparar as preciosas batatas fritas folheadas a ouro.

— De onde vocês se conhecem? — pergunto, quando ele se afasta.

— Quem? O garçom? A gente não se conhece.

— Oh!

Paira um silêncio. Tomo um pouco do meu café e limpo o pó de canela do nariz com as costas da mão.

— Então... Achei que você não ia me reconhecer sem o colarinho de padre!

— Você já disse isso.

— É mesmo? Eu faço isso às vezes. Fico confuso sobre o que disse ou não disse, ou me pego falando em voz alta coisas que só queria dizer na minha cabeça, se é que você me entende...

— Entendo perfeitamente — diz ela, segurando meu braço — Sempre fico confusa e digo coisas sem pensar... — Até que ela está tentando ser legal, estabelecendo uma coisa em comum entre nós, mas eu não acredito nisso nem por um segundo. — Juro que não sei o que estou fazendo na metade do tempo...

— Eu também. Como a dança de ontem à noite...

— Ah, sim... — diz ela, franzindo os lábios — A dança...

— É, me desculpe... Eu estava um pouco bêbado, para falar a verdade.

— Não, você estava ótimo. Você dança bem!

— Até parece! — comento. — Sabe, me admira ninguém ter tentado pôr um lápis na minha boca!

Ela me lança um olhar de dúvida.

— Por quê?

— Bem... para eu não morder a língua e arrancar um pedaço dela? — Ainda nada. — Sabe... Como um... ataque epiléptico!

Mas ela não diz nada, só toma um pouco mais de café. Oh, meu Deus, talvez eu a tenha ofendido. Talvez ela conheça um epiléptico. Talvez haja epilepsia na família dela! Talvez ela seja epiléptica...

— Você não está com calor com essa jaqueta? — pergunta ela, e o garçom chega com as requintadas batatas fritas, mais ou menos umas seis, arranjadas artisticamente num grande suporte para ovo cozido, depois fica rondando, sorrindo, cheio de si, tentando puxar papo, mas eu continuo falando.

— Sabe, se a vida me ensinou duas coisas até agora, uma delas é jamais dançar bêbado.

— E a segunda?

— Nunca tentar usar leite num sifão.

Ela ri. O garçom se retira reconhecendo a derrota. Continuo a conversa.

— ...Não sei o que eu estava fazendo. Pensei em preparar uma incrível bebida leitosa batida, mas já existe leite batido... — (pausa, um gole) — ...É iogurte!

Às vezes, acho que seria capaz de vomitar de propósito, sério.

Depois, a gente conversa um pouco mais e ela come as batatas fritas, mergulhando-as numa poça de ketchup, e tudo fica meio parecido com as tardes naquele café de A canção de amor de J. Alfred Prufrock, de T. S. Eliot, só que a comida é mais cara. Arrisco-me a experimentar um pêssego? Não a esses preços.... Descubro mais coisas sobre ela. É filha única, como eu — algo a ver com as trompas uterinas da mãe, ela acha, mas não tem certeza. Não se importa de ser filha única, o que significa que sempre foi uma ávida leitora e estudou num internato, o que, politicamente, não é muito correto, ela sabe, mas, mesmo assim, gostou e foi representante de turma. É muito ligada ao pai, que faz documentários de arte para a BBC e a deixa estagiar lá nas férias, e já encontrou Melvyn Bragg em muitas, muitas ocasiões, e parece que ele é muito engraçado na vida real e bem sexy. Também gosta da mãe, claro, mas as duas discutem muito, talvez por serem tão parecidas, e a mãe trabalha meio expediente na Tree Top, uma organização beneficente que constrói casas em árvores para crianças carentes.

— Mas elas não ficariam melhor morando com os pais? — pergunto.

— Como?

— Bem... Crianças morando em árvores sozinhas... Isso deve ser perigoso, não?

— Não, não... Elas não moram nas casas das árvores. É só uma atividade de férias de verão.

— Ah, tá. Entendi...

— A maioria dessas crianças de lares carentes só tem um dos pais e nunca passou férias com a família na vida! — Meu Deus, ela está falando de mim! — É uma coisa fantástica. Você poderia participar no próximo verão, se não tiver nada para fazer.

Concordo com a cabeça, entusiasmado, mas não sei bem se ela está me convidando para umas férias ou para um trabalho voluntário.

Então Alice me conta suas férias de verão. Foram passadas em parte com as crianças carentes e agitadas nas casas das árvores. O resto do tempo foi dividido entre as casas em Londres, Suffolk e Dordogne e, depois, na apresentação com o grupo de teatro da escola no Festival de Edimburgo.

— Que peça vocês montaram?

— A alma boa de Setsuan, de Bertold Brecht. — Sim, está claro o papel que ela representou, não? É uma bela oportunidade para usar a palavra epônimo.

— E quem interpretou o epônimo...?

— Ah, fui eu — responde.

Sim, sim, claro que foi você.

— E como foi?

— Como assim?

— Foi bem?

— Ah, acho que não. Embora o The Scotsman tenha achado que sim. Você conhece alguma coisa da peça?

— Ah, sim, conheço muito bem — minto. — Na verdade, montamos O círculo de giz caucasiano, do Brecht, na minha escola no ano passado — faço uma pausa, beberico o cappuccino. — Eu era o giz.

Meu Deus! Acho que eu vou vomitar!

Mas ela dá risada e começa a falar dos desafios de interpretar o personagem central de Brecht e aproveito a oportunidade para observar Alice sóbrio e sem os óculos suados pela primeira vez, e ela é mesmo linda. Com certeza, é a primeira mulher realmente linda que já vi, sem contar arte renascentista e televisão. Na minha escola, as pessoas diziam que Liza Chambers era linda, mas, na verdade, queriam dizer que era tesuda, mas Alice é linda de verdade, com uma tez aveludada que parece não ter poros e reluzindo com uma luminescência orgânica embaixo da pele. Ou será que estou querendo dizer fosforescente? Ou fluorescente? Qual é a diferença? Vou pesquisar depois. Não importa... Parece que ela está sem maquiagem nenhuma, ou, o mais provável, com uma maquiagem discreta que parece não existir, a não ser talvez nos olhos, pois ninguém tem cílios assim na vida real, tem? E os olhos... castanho não é bem a palavra, está mais para pardo e opaco, não consigo pensar numa cor melhor, mas são saudáveis e brilhantes, e tão grandes que dá para ver toda a íris, salpicada de verde. A boca é carnuda, cor de morango, como a da Tess Derbyfield. Só que uma Tess feliz e equilibrada, que, graças a Deus, descobriu que, afinal, é, de fato, uma D‘Urberville. E o melhor de tudo é uma pequena cicatriz branca no lábio inferior, que imagino que tenha adquirido em algum angustiante incidente de infância, enquanto colhia frutas silvestres. O cabelo é cor de mel e levemente cacheado, puxado para trás num estilo que pode ser definido como  pré-rafaelita. Ela parece saída do... qual é mesmo o termo de T. S. Eliot? Quattrocento. Ou será de Yeats? E se refere ao século XIV ou XV? Vou pesquisar isso também quando voltar. Lembrete mentaclass="underline" pesquisar Quattrocento, damasco, pardo, luminescente, fosforescente e fluorescente.