— Quanto custou a pilha, então?
— Custou uma libra e 98 pence.
— Então, se der a você 0,66 pence a gente pode ouvir alguma coisa decente?
— Tipo o quê? Kate Bush? Tudo bem, Jackson, vamos ouvir Kate Bush então. Vamos todos nos divertir muito ouvindo Kate Bush, nos divertir muito, muito mesmo, dançando e cantando junto com Kate Bush... — Enquanto Tone e eu discutimos, Spencer simplesmente se debruça sobre o som, ejeta The Best Of The Zep e joga a fita longe, no mar.
Tone grita Ei!, atira a lata de cerveja nele e os dois saem correndo pelo píer. É sempre melhor não se envolver muito nessas brigas. Tone tende a ficar meio fora de controle, possuído pelo espírito de Odin ou sei lá o que, e, se me envolvo, acabo com o Spencer sentado nos meus braços com Tone peidando na minha cara. Por isso, prefiro ficar sentado, quieto, bebendo minha cerveja e vendo Tone tentar passar as pernas de Spencer por cima do guarda-corpo do píer.
Mesmo sendo setembro, já se pode sentir que o ar da noite começa a ficar úmido e frio, uma sensação de fim de verão, e fico feliz por estar vestindo meu casaco do exército. Sempre odiei o verão; o jeito como o sol brilha na tela da TV durante a tarde, a insistente pressão para se usar short e camiseta. Odeio short e camiseta. Se me sentasse do lado de fora de uma farmácia usando short e camiseta, garanto que alguma velhinha tentaria me dar uma moeda.
Não... Estou mesmo ansioso é pelo outono, sair chutando folhas a caminho da aula, conversar animadamente sobre poetas metafísicos com alguma garota chamada Emily, Katherine ou François, algo assim, de meias-calças de lã e cabelinho chanel, e aí voltar para o quartinho dela no sótão e fazer amor na frente da lareira elétrica. Depois, vamos ler T. S. Eliot em voz alta e beber vinho do Porto antigo e de qualidade em tacinhas de vidro, enquanto ouvimos Miles Davis. Pelo menos, é assim que imagino que vai ser a experiência universitária. Gosto da palavra experiência. Soa como andar de montanha-russa.
A briga terminou. Tone está gastando o excesso de sua agressividade jogando as almôndegas de porco agridoce nas gaivotas. Spencer volta colocando a camisa para dentro da calça, senta ao meu lado e abre outra lata de cerveja. Realmente, Spencer leva jeito com a lata de cerveja: parece até que ele está tomando uma taça de martíni.
Spencer é a pessoa de quem mais vou sentir falta. Ele não vai fazer faculdade, apesar de ser a pessoa mais inteligente que já conheci, assim como a mais bonita, a mais centrada e a mais maneira. Nunca diria isso a ele, claro, pois soaria meio assustador, mas nem é preciso; está na cara que ele sabe disso. Poderia ir para a faculdade se quisesse mesmo, mas fez merda nos exames, não de propósito, claro, mas todo mundo viu o que ele fez. Estava sentado na carteira ao lado da minha na prova de inglês, e dava para ver pelos movimentos da caneta que ele não estava escrevendo; estava desenhando. Na questão sobre Shakespeare, ele desenhou As alegres comadres de Windsor, e, na de poesia, uma ilustração que intitulou A experiência de Wilfred Owen nos horrores das trincheiras em primeira mão. Fiquei tentando fazer com que se virasse para mim, para lançar um olhar amigável de qual é, cara?, mas ele manteve a cabeça abaixada, desenhando, e, depois de uma hora, levantou e saiu, piscando para mim, e não foi uma daquelas piscadelas convencidas. Foi com os olhos embargados e vermelhos, como se fosse um soldado raso indo ao encontro do batalhão de fuzilamento.
Depois disso, simplesmente deixou de fazer as provas. Pelas costas dele, o termo colapso nervoso foi mencionado algumas vezes, mas Spencer é maneiro demais para ter um colapso nervoso. Mesmo se tivesse um, ele faria isso parecer muito maneiro. Na minha opinião, esse jeito Jack Kerouac de garoto torturado é aceitável até certo ponto, mas não se for para interferir nas suas notas.
— Então, o que você vai fazer, Spence?
Ele estreita os olhos e olha para mim.
— O que você quer dizer com fazer?
— Assim, tipo um emprego.
— Eu tenho um emprego. — Spencer está no seguro-desemprego, mas também ganha alguns trocados por fora trabalhando num posto de gasolina 24 horas na A127.
— Eu sei que você tem um emprego. Mas no futuro...
Spencer olha para o horizonte do estuário e começo a me arrepender de ter puxado o assunto.
— O seu problema, meu caro amigo Brian, é que você subestima os prazeres da vida em um posto de gasolina 24 horas. Posso comer quantos doces quiser. Ler guias rodoviários. Inalar fumaças interessantes. Copos de vinho de graça... — Ele toma um grande gole de cerveja e procura um jeito de mudar de assunto. Enfia a mão no bolso da jaqueta Harrington, tira uma fita cassete com uma etiqueta escrita à mão e diz: — Fiz para você. Para tocar na frente dos seus novos amigos universitários e fingir que tem bom gosto.
Eu pego a fita e, na lateral, está escrito em letras maiúsculas cuidadosamente desenhadas em 3D: Compilação para a faculdade do Bri. Spencer é um artista brilhante.
— Sensacional, Spencer. Valeu, cara...
— Tudo bem, Jackson, é só uma fita de 90 minutos do que está no mercado. Não precisa chorar por causa disso. — Ele fala assim, mas nós dois sabemos que uma fita de 1 hora e 30 minutos como essa representa pelo menos 3 horas de trabalho, mais ainda se você escrever uma etiqueta. — Põe para tocar, tá? Antes que aquele imbecil volte.
Eu coloco a fita, aperto o play e é o Curtis Mayfield cantando Move On Up. Spencer era moderno, mas resolveu mudar para o soul de raiz: Al Green, Gil Scott-Heron, esse tipo de coisa. Spencer é tão maneiro que até gosta de jazz. Não só Sade e The Style Council, mas jazz propriamente dito, do tipo chato e irritante. A gente se senta e escuta por um tempo. Tone está tentando tirar dinheiro dos telescópios com um canivete que comprou numa excursão da escola a Calais, enquanto eu e Spencer assistimos à cena como pais indulgentes de uma criança com sérios problemas de comportamento.
— E aí, você vai voltar nos fins de semana? — pergunta Spencer.
— Não sei. Espero que sim. Mas não todos.
— Não desaparece, tá? Senão, vou ficar preso aqui sozinho com o meu Conan, o Bárbaro... — e Spencer indica Tone com a cabeça, que, agora, está dando voadoras e chutando o telescópio.
— A gente não devia fazer um brinde ou algo assim? — pergunto.
Spencer franze os lábios.
— Um brinde? A quê?
— Ah... ao futuro ou algo do tipo?
Spencer suspira, bate a latinha dele na minha.
— Ao futuro! Vamos torcer para que a sua pele melhore.
— Vai se danar, Spencer — digo.
— Vai se danar, Brian — retruca ele, mas dando risada.
Quando chegamos nas últimas latas de cerveja, já estamos para lá de bêbados e deitamos de barriga para cima, sem dizer nada, só ouvindo o mar e Otis Redding cantando Try a Little Tenderness, e, nessa noite clara de fim de verão, olhando para as estrelas, com os meus melhores amigos ao lado, sinto como se a vida real estivesse afinal começando e que absolutamente tudo é possível.
Quero ouvir gravações de sonatas de piano e saber quem está tocando. Quero ir a concertos de música clássica e saber quando é o momento certo de aplaudir. Quero conseguir entender jazz moderno sem achar que está tudo errado. Quero saber o que é, exatamente, o Velvet Underground. Quero estar totalmente familiarizado com o Mundo das Ideias. Quero entender as complexidades da economia e o que as pessoas veem no Bob Dylan. Quero ter ideais políticos radicais, porém humanitários e consistentes, e quero me envolver em debates calorosos, mas racionais, em volta de uma mesa de madeira de cozinha dizendo coisas como Defina seus termos! e Sua premissa é evidentemente enganosa! e, de repente, perceber que o sol está nascendo e que ficamos conversando a noite toda. Quero usar palavras como epônimo e solipsismo e utilitário com segurança. Quero saber apreciar bons vinhos, licores exóticos e puros maltes de qualidade, e aprender a beber essas coisas sem me transformar num completo imbecil; comer comidas estranhas e exóticas, ovos de faisão e lagosta ao termidor, coisas que mal soam comestíveis ou que nem consigo pronunciar. Quero fazer amor com mulheres lindas, sofisticadas e intimidadoras, durante o dia, ou de luz acesa, ou mesmo sóbrio, e sem medo. E quero ser fluente em muitos idiomas, talvez até em uma ou duas línguas mortas, estar sempre com um caderno com capa de couro em que vou esboçar observações e pensamentos incisivos, às vezes a estrofe de um verso. Mais do que tudo, quero ler livros. Livros grossos como tijolos, livros de capas de couro de papel fininho e aquelas fitas roxas para marcar onde você parou; livros de coletâneas de versos baratos, empoeirados e de segunda mão, livros importados caríssimos com ensaios incompreensíveis de universidades estrangeiras.