— Lute contra o apartheid! Apoie o boicote. Não compre produtos sul-africanos! Diga não ao apartheid!... — Começo a me sentir um pouco boicotado também, e já estou me afastando quando ela diz, numa voz um pouco mais suave: — E aí, está se adaptando bem?
— Ah, tudo bem. Estou morando com dois Ruperts malditos, mas, fora isso, não é tão ruim... — Dei um ar de guerra de classes para agradar, mas acho que ela não entendeu, pois me olha confusa.
— Os dois se chamam Rupert?
— Não, eles se chamam Marcus e Josh.
— E quem são os Ruperts?
— Ah... Você sabe... Rupert — mas o comentário começou a perder a graça, e me pergunto se não seria melhor me oferecer para ajudar a distribuir os panfletos. Afinal, é uma causa em que acredito, e sigo uma política estrita de não comer frutas sul-africanas, quase tão estrita quanto minha política de não comer frutas. Mas, agora, Rebecca está dobrando os panfletos que sobraram para deixar com os colegas.
— Tudo bem... Estou terminando por hoje. A gente se vê mais tarde, Toby. Até mais, Rupert... — E, de repente, estou caminhando ao lado dela, sem saber muito bem de quem foi a ideia. — Então, para onde vamos agora? — ela pergunta, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco de vinil preto.
— Na verdade, estava a caminho da Galeria de Arte.
— Galeria de Arte? — pergunta, intrigada.
— Sim, pensei em, sei lá, dar uma conferida...
Ela torce o nariz:
— Tudo bem. Vamos dar uma conferida! — e continuo andando atrás dela.
Ah, o velho truque de “dar uma conferida” na galeria de arte. Faz tempo que estou querendo tentar esse truque, pois, em Southend, não seria possível, mas ali a galeria é apropriada; atmosfera de biblioteca, bancos de mármore, seguranças cochilando em cadeiras desconfortáveis. Meu plano era trazer Alice, mas é bom fazer antes um teste com outra pessoa, para ensaiar as minhas reações espontâneas.
Admito que minha atitude em relação às artes visuais pode ser bem superficial; por exemplo, muitas vezes o que mais me ocorre é que alguém na pintura parece, mais ou menos, com alguém da TV. Existe também uma certa etiqueta em galerias de arte que preciso entender — quanto tempo ficar de pé na frente de cada quadro, que ruídos emitir, esse tipo de coisa — , mas Rebecca e eu logo entramos num ritmo bom e confortável; não tão rápido a ponto de parecer superficial, não tão lento a ponto de ser entediante.
Estamos dando uma conferida na sala do Século XVIII, parados em frente a uma pintura não particularmente extraordinária de alguém de quem nunca ouvi falar, um Lorde Gainsboroughesque e uma Lady embaixo de uma árvore.
— A perspectiva é interessante — comento, mas falar que os objetos ficam menores quanto mais longe estão me pareceu um pouco básico. Por isso, resolvo fazer uma abordagem mais marxista e sociopolítica.
— Olhe só as expressões deles! Parecem bem satisfeitos com o que têm!
— Se você diz... — responde Rebecca, sem entusiasmo.
— Então, você não é uma amante das artes?
— Claro que sou. Mas não acho que só porque uma coisa foi posta numa grande moldura eu sou obrigada a ficar parada na frente dela por horas esfregando o queixo. Quer dizer, olhe essas coisas... — Mãos ainda enfiadas nos bolsos do casaco, ela gesticula em volta da sala com as asas de morcego de seu casaco — ...Retratos de ricos ociosos inspecionando seus ganhos ilegítimos, imagens enganosas de trabalho rural massacrante, pinturas de porcos limpos e imaculados. Olhe só essa monstruosidade — gesticulando em direção ao nu de uma gorducha de pele macia e rosada recostada numa cadeira reclinável — ...Pornô leve para um mercado de escravos. Onde estão os pelos pubianos, pelo amor de Deus?! Alguma vez na vida você já viu uma mulher nua que fosse assim? — Penso em revelar que nunca vi uma mulher nua, mas não quero estragar minhas credenciais artísticas e fico quieto. — Quer dizer, a quem se destina isso, na verdade?
— Então, você acha que a arte não tem valor intrínseco?
— Não. Só acho que esses valores intrínsecos não existem só porque alguém, em algum lugar, decidiu chamar de arte. Como essas coisas... É o tipo de porcaria que se vê nas paredes de um Clube Conservador provinciano...
— Então, imagino que você queimaria tudo isso se houvesse uma revolução...
— Ah, você tem um belo hábito de reduzir as pessoas a estereótipos...
Sigo-a por uma sala cheia de natureza-morta e resolvo desviar a conversa da política: — Qual é o plural de natureza-morta? É naturezas-mortas ou continua natureza-morta mesmo? — Achei que estava fazendo uma afirmação sofisticada, mas ela não morde a isca.
— Então, qual é a sua posição política? — pergunta.
— Bem, acho que sou meio de esquerda, liberal e humanista.
— Em outras palavras, não é nada...
— Bem, eu não diria isso...
— O que você está cursando mesmo?
— Lit. Ing.
— O que é Liting?
— Literatura inglesa.
— É assim que chamam hoje em dia? E o que o atraiu para Liting, além do fato de você ser um tremendo enrolão?
Decido ignorar o último comentário e ir direto ao meu número.
— Bem, não tinha muita certeza sobre o que fazer. Eu tinha uma boa base de qualificações para escolher e pensei em história, ou arte, ou talvez em uma ciência. Mas o bom da literatura é o fato de abranger todas as outras disciplinas... História, filosofia, política, política sexual, sociologia, psicologia, linguística, ciência. Literatura é a resposta organizada do homem ou da mulher ao mundo ao redor. Então, de certo modo, é natural que essa resposta deveria conter toda uma... — vamos arriscar — ...panóplia de conceitos intelectuais, ideias, questões...
Et cetera, et cetera, et cetera. Para ser sincero, não é a primeira vez que digo essas coisas. Na verdade, usei esse número em todas as minhas entrevistas de universidades, e mesmo não sendo exatamente um Lutaremos nas praias... de Churchill, em geral funciona muito bem com acadêmicos, especialmente se acompanhado, como aqui, de muitas despenteadas de cabelo e gestos enfáticos. Levo o discurso ao seu clímax devastador — ...Assim como o epônimo Hamlet diz para Polônio no Segundo Ato, Cena Dois, que, afinal, é tudo uma questão de palavras, palavras, palavras, o que chamamos literatura é apenas o veículo para o que poderia ser mais bem descrito como o Estudo de... Tudo.
Rebecca ouve aquilo, balança a cabeça.
— Bem, com certeza esse foi o maior monte de bobagens que ouvi nos últimos tempos — comenta, começando a ir embora.
— Você acha mesmo? — pergunto, trotando atrás dela.
— Por que não dizer simplesmente que você quer sentar a bunda em algum lugar e ficar lendo durante três anos? Pelo menos, seria mais honesto. Literatura não pode ensinar tudo, e, mesmo se ensinasse, seria inútil, superficial e pouco prática. Quer dizer, qualquer um que ache que pode aprender alguma coisa prática sobre política, psicologia ou ciência folheando Sob o bosque de leite está falando besteira. Já imaginou alguém dizendo para você: Olha, senhor, seja lá qual for o seu nome, eu vou remover o seu baço e, bem, eu não estudei medicina, mas não se preocupe, porque eu gostei muito de Os documentos póstumos do Club Pickwick...?
— Bem, medicina é um caso especial.
— E política não é? Ou história? Ou direito? Por que não? Porque são mais fáceis? Não merecem uma análise mais rigorosa?
— Então, você não acha que romances, poesias e peças de teatro contribuem para a qualidade e a riqueza da vida?
— Eu não disse isso, disse? Claro que contribuem, mas qualquer música pop de três minutos também, mas ninguém precisa estudar isso durante três anos.