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Andando pela cidade, não paro de ver o reflexo do meu novo corte de cabelo nas vitrines dos restaurantes, um rosto assombrado e com medo. Essa cera de cabelo é uma enganação. Eles fazem pensar que você vai se sentir no controle, mas só fez grudar minha franja na testa, como uma gaivota suja de óleo. Talvez fique melhor à luz de velas. Desde que não entre em combustão.

Avalio os restaurantes na parte mais floreada da cidade e, enfim, tomo minha decisão: uma tradicional trattoria italiana chamada Luigi‘s Pizza Plaza. O estabelecimento também serve hambúrguer, costela e iscas de peixe, e tem toalhas xadrez vermelhas e velas em garrafas de vinho parecendo o Vesúvio congelado. Os pãezinhos são cortesia da casa e há um moedor de pimenta gigante em cada mesa. Reservo uma mesa para dois em nome de Jackson, 20h30, com um homem de rosto vermelho e unhas sujas que pode ou não ser o epônimo Luigi e volto aos meus afazeres.

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PERGUNTA: Uma sarja azul durável cujo nome homenageia Serge de Nimes; a seiva exsudada pela árvore hevea brasiliensis; e filamentos tecidos pelo gênero Bombyx. Quais os nomes dos três materiais?

RESPOSTA: Denim, borracha e seda.

 

Eu deveria estar escrevendo uma redação sobre Imagética da natureza nos sonetos sagrados de John Donne, mas já estou pesquisando há uma semana e não consegui encontrar nada.

Minhas anotações nas margens também não ajudam muito. Escrevi coisas como a Anunciação!, ironia?, Cf. Freud e aqui ele vira a mesa!, mas não consigo me lembrar do motivo. Por isso, pego Gramatologia, de Jacques Derrida. Acho que existem seis estágios de leitura de livros. O primeiro é o de livros ilustrados. Depois, livros com mais ilustrações do que palavras; livros com mais palavras do que ilustrações; livros sem ilustrações, só talvez um mapa ou uma árvore genealógica, mas com muitos diálogos; depois, livros com longos parágrafos e quase nenhum diálogo e, por fim, livros sem diálogos, sem narrativa, só de parágrafos grandes e longos com notas de rodapé, bibliografias, apêndices e letras muito, muito pequenas. Gramatologia é, com certeza, um livro do sexto tipo e, intelectualmente falando, ainda estou empacado em algum lugar entre os estágios quatro e cinco. Leio a primeira frase, procuro inutilmente por um mapa, uma foto ou ilustração, e caio no sono.

Quando acordo, percebo que são 16h30 e que só tenho três horas para me arrumar para o jantar. Quando vou ao banheiro, vejo que Josh deixou um monte de calças jeans de molho em detergente na banheira. Tenho de tirar as roupas do caldo azul gelado e amontoar tudo na pia antes de abrir as torneiras, mas só quando entro no banho percebo que não escoei todo o sabão em pó e que estou num ciclo de lavagem de algodão não biológico/poliéster. Por isso, o banho não é bem a experiência relaxante que eu esperava, inclusive por ter de me enxaguar com água fria do chuveiro, para evitar uma queimadura química mais grave. Olhando no espelho, noto que fiquei ligeiramente azul.

Devolvo as calças jeans molhadas para a banheira e, num justo espírito de vingança, vou até o quarto de Josh. Quando constato que ele não está lá, entro de fininho e roubo seu esfoliante facial Apri, que é feito, basicamente, de sementes de pêssego moídas num sabonete para passar no rosto. Consigo uma boa espuma, mas, quando chega a hora do enxágue, os resultados não são muito bons. Parece que atravessei uma vidraça. Ou isso ou que alguém esfregou sementes de pêssego moídas na minha cara com muita força. Há uma lição a ser aprendida aqui, acho, e é a seguinte: espinhas não devem ser esfregadas.

Com o rosto todo contraído e com medo de que comece a sangrar caso eu sorria, volto ao meu quarto, onde meu futon está encostado na parede, secando. Guardo minha roupa suja e tenho o maior cuidado para escolher quais livros deixar espalhados, no caso de Alice voltar comigo para um café ou, o mais provável, só para tomar um café. Escolho O Manifesto Comunista, Suave é a noite, As baladas líricas, The female eunuch, alguns e.e. cummings e Canções e sonetos, de John Donne, para o caso de as coisas esquentarem e eu precisar de uma poesia lírica ao alcance da mão. Fico em dúvida quanto ao The female eunuch, pois, mesmo querendo mostrar que minhas posições políticas são progressivas e radicais, a ilustração na capa de um torso feminino imaterial sempre me pareceu um pouco sensual, tanto que eu costumava esconder o livro da minha mãe.

Visto uma cueca preta novinha, minha melhor calça preta, um novo paletó de segunda mão comprado na loja de roupas vintage Olden Times, minha melhor camisa branca, uma gravata-borboleta e meu novo suspensório preto. Ajeito a gaivota morta na cabeça e borrifo no rosto um pouco de Old Spice, de um frasco de porcelana branca que era do meu pai, o que me confere um cheiro um pouco antigo e apimentado e arde à beça. Depois, procuro na carteira a camisinha que sempre carrego para o caso de um milagre. Aliás, essa camisinha é a número dois num projeto de trilogia, e a primeira encontrou seu pungente destino numa caçamba de lixo nos fundos do Littlewoods. Mora na minha carteira há tanto tempo que está grudada no revestimento interno e a embalagem de papel alumínio já começou a desbotar. Mesmo assim, gosto de estar com ela, assim como algumas pessoas gostam de usar uma medalha de São Cristóvão. Aliás, minhas chances de usar essa camisinha essa noite é a mesma de transportar o menino Jesus por um rio.

No trajeto até Kenwood Manor, tenho de parar, mais ou menos, a cada 100 metros, porque meus suspensórios se recusam a ficar presos na calça e insistem em se soltar e ricochetear nos meus mamilos.

Estou arrumando o suspensório pela vigésima vez, quando uma voz atrás de mim diz:

— Alguém roubou seu ursinho de pelúcia, Sebastian?

— Oi, Rebecca, como vai?

— Bem, na verdade a pergunta é: como vai você?

— Como assim?

— O que aconteceu com seu cabelo?

— Você não gostou?

— Ficou parecido com o Heinrich Himmler. E por que essa roupa toda chique?

— Bem, é como dizem... O traje faz o homem...

— ...se sentir desconfortável?

— Se quer mesmo saber, estou indo jantar com alguém.

— Huuuuuuuuum!

— É só uma coisa platônica.

— E quem é a garota de sorte? Não é aquela Alice Harbinson, espero... — Olho para o céu com um ar inocente. — Ah, não acredito. Vocês garotos são tããão previsíveis. Sério, se você quer brincar de boneca, por que não vai e compra uma?

— O quê?

— Nada. Ei, é melhor você ir andando, Jackson, senão vai perder o barco.

— O que você quer dizer com isso?

— Que ela é uma garota muito popular. Só isso. Estamos na mesma ala, e toda noite tem uma fila de boçais babando na porta dela, com suas garrafas de Lambrusco morno...

— Sério?

— Uh-hum. E ela tem o hábito de andar pelo corredor só de calcinha preta e sutiã. Só não sei dizer quem se beneficia desse espetáculo...

Tiro a imagem da minha cabeça.

— Você fala como se não gostasse dela.

— Ei, eu mal a conheço... Nem estou no nível da turma dela, não é? Além do mais, acho que ela não é o que se pode chamar de um exemplo de garota, se me entende. Não sei que tipo de atração pode exercer uma menina que ainda desenha uma carinha feliz no meio da letra O. Mas é só minha opinião. E aonde você vai levar a adorável Alice?

— Ah, num restaurante na cidade. O Luigi‘s.