Выбрать главу

— Deve ter sido terrível.

— É, bem... Você sabe...

E ela se debruça, olhos arregalados, segurando minha mão, enquanto, com a outra mão, pega a garrafa de parafina derretida e a posiciona para me ver melhor.

— Você se incomoda de falar sobre isso?

— Não, de maneira alguma — respondo, e começo a falar.

15

PERGUNTA: Lee J. Cobb, Fredric March e Dustin Hoffman... Todos interpretaram o papel do infeliz Willy Loman em qual peça de Arthur Miller, de 1949?

RESPOSTA: A morte do caixeiro-viajante.

 

— Meu pai era vendedor de vidro isolante, o que é uma profissão esquisita, pois é um trabalho que as pessoas gostam de ironizar, como guarda de trânsito, inspetor de impostos ou trabalhadores de esgotos. Talvez porque, no fundo, ninguém goste de vidro isolante. Meu pai não gostava, não depois de anos nesse trabalho. Antes disso, ele serviu o exército, quando conheceu a minha mãe e eu nasci. Entrou no Serviço Nacional, foi um dos últimos a fazer isso, e meio que gostou e continuou, inclusive por não saber mais o que fazer. Lembro-me de ficar apreensivo toda vez que o noticiário falava de alguma guerra em algum lugar, como a tensão com a Rússia, ou quando a Irlanda do Norte estava em chamas ou coisa assim, preocupando-me com que ele fosse convocado, colocado num uniforme e recebesse uma arma. Mas acho que ele não era um soldado, estava mais na parte burocrática. Mas, quando nasci, minha mãe bateu o pé e disse que ele tinha de sair do exército, porque ela estava de saco cheio de ficar se mudando o tempo todo, que odiava a Alemanha Oriental, onde eu nasci. Então, ele voltou para Southend e montou o negócio de vidro isolante, e foi assim que aconteceu.

— E ele gostava?

— Claro que não. Quer dizer, devia gostar no começo, mas acho que, depois, não aguentava mais. São muitas horas de trabalho. Você precisa encontrar as pessoas em casa... O que significa de manhã cedinho, à tarde e à noite, e, em geral, já estava escuro quando ele voltava do trabalho, mesmo no verão. E tinha essa coisa de ir de porta em porta: Com licença, senhora, você está ciente da grande diferença que um vidro isolante pode fazer na sua conta do aquecedor?, esse tipo de coisa. E só ganhava comissão, o que fazia a preocupação com dinheiro ser algo constante. Seja qual for trabalho que eu acabe fazendo, não quero jamais depender de comissão. Sei que deveria ser um incentivo, mas é um incentivo para foder a sua vida. É como trabalhar com uma arma na cabeça. É muito cruel, acho. Bem. Desculpe. Estou sendo chato.

De qualquer maneira, ele detestava. Nunca me disse isso, claro, não é coisa que se diga a um garotinho, mas devia detestar, pois sempre chegava irritado do trabalho; sem gritos ou socos ou coisa assim, mas sempre aquela atitude calada, punhos cerrados, os dedos crispados e o rosto vermelho, irritado com qualquer coisinha como um brinquedo jogado no chão ou desperdício de comida. A gente gostaria que as lembranças dos pais fossem de ser carregado nos ombros em piqueniques e jogar pedrinhas de cima de pontes, essas coisas, mas nenhuma infância é perfeita e o que eu mais me lembro é do meu pai discutindo com minha mãe na cozinha por causa de dinheiro ou trabalho ou sei lá o que, o rosto dele todo vermelho, abrindo e fechando os punhos.

— Que coisa terrível.

— É mesmo? Bem, eu devo estar exagerando um pouco. O que mais me lembro é de assistir televisão com ele, quando minha mãe deixava eu ficar acordado até ele chegar em casa. Sentado no chão entre as pernas dele. Programas de perguntas e respostas. Ele adorava programas de perguntas e documentários sobre a natureza, David Attenborough, coisas educacionais, sempre falando de como a educação era importante. Imagino que achava ser a chave para uma vida boa, para não ser infeliz, poder trabalhar em algo que não odiasse.

— Mas... como foi que aconteceu...?

— Bem, eu não sei ao certo. Não gosto de falar com minha mãe sobre isso porque ela fica perturbada, mas parece que ele estava trabalhando na casa de um cliente, falando sobre os benefícios do vidro isolante ou sei lá e... caiu. Bem ali, na sala de estar. Voltei da escola e estava assistindo à TV, enquanto minha mãe fazia um chá, quando bateram na porta. Houve uma conversa no corredor, eu saí para saber o que estava acontecendo e vi dois policiais e minha mãe encolhida no carpete. No começo, achei que talvez meu pai tivesse sido preso ou coisa assim, mas aí uma policial disse que o estado dele era grave e correram com a minha mãe para o hospital e eu fiquei com a vizinha e ele morreu pouco depois de dar entrada. Ah, o vinho acabou. Você quer mais um pouco? Outra garrafa? Fiquei com os vizinhos e eles me contaram na manhã seguinte. Outra garrafa de Lambrusco, por favor. Não, ainda não escolhemos a sobremesa. Pode esperar mais uns cinco minutos?

E é isso. Olhando para trás, não me surpreende, apesar de ter só 41 anos, porque ele parecia ter um... nó apertado, o tempo todo. E bebia, muito, pub na hora do almoço e depois do trabalho, ele sempre rescendia a cerveja. E fumava uns 60 cigarros por dia. Eu dava cigarros para ele de presente de Natal. Acho que não me lembro de nenhuma vez em que ele não estivesse fumando. Até na foto com a minha mãe e eu na maternidade ele está com um cigarro aceso. Num hospital, com um cinzeiro e uma garrafa de cerveja equilibrada no meu berço. É patético.

— E como você reagiu?

— À morte dele? Hã... Não sei bem. Foi estranho, acho. Quer dizer, eu chorei e tudo mais, mas não queriam me deixar ir à escola, o que me preocupou, porque eu não gostava de perder aula, e aí você pode ter uma ideia do tipo de nerd frio e esquisito que eu era. Para ser sincero, eu estava mais chateado pela minha mãe, porque ela realmente amava o meu pai e tinha só, o que, 33 anos na época, e ele foi o único homem da vida dela, antes e desde então, até onde sei, e ela ficou muito abalada. Ah, ela ficava bem quando havia pessoas em volta, e claro que, nas duas primeiras semanas, a casa ficou lotada de religiosos, amigos do meu pai, vizinhos, minha avó, tias e tios, e não havia tempo para minha mãe ficar muito triste, porque estava sempre ocupada fazendo sanduíches e preparando bules de chá, montando camas de armar para uns primos estranhos da Irlanda, que nunca tínhamos visto e nunca mais vimos. Mas, depois de algumas semanas, começaram a ir embora e ficamos só eu e minha mãe. E esse foi o pior período, quando as coisas se acalmaram e as pessoas nos deixaram sozinhos. Uma combinação bem esquisita: um garoto adolescente e a mãe. Quer dizer, fica muito claro que está faltando alguém.

Olhando para trás, acho que eu poderia ter sido melhor com a minha mãe, conversado mais com ela e coisas assim. Mas eu detestava ficar naquela sala todas as noites, vendo ela assistir Dallas ou sei lá o que e, de repente, explodir em lágrimas. Quando a gente tem essa idade, esse tipo de coisa, o sofrimento, é... constrangedor. O que eu podia fazer? Dar um abraço nela? Dizer alguma coisa? O que um garoto de 12 anos tem a dizer? Então, de uma maneira estranha e terrível, comecei a ficar ressentindo com aquilo. Comecei a evitar minha mãe. Eu ia da escola para a biblioteca e da biblioteca para o meu quarto para fazer o dever de casa, e eu sempre tinha lições demais se ela me perguntasse. Que coisa terrível!

— Como se comportaram na escola?

— Ah, tudo bem. Garotos de 12 anos não sabem nada sobre compaixão, não na minha escola, e por que deveriam saber? Alguns tentaram, mas dava para ver que era encenação. E também, e eu me envergonho disso, na época não era tão importante o fato de o meu pai ter morrido aos 41 anos, nem os sentimentos da minha mãe. Eu só pensava no que iria acontecer comigo. Qual é a palavra? Solipsismo ou solecismo ou coisa assim? Solecismo.