— Acabo de perceber que ainda não dei os parabéns para você.
— Ah, tudo bem...
— Feliz aniversário, mesmo assim...
— Obrigado, para você também.
— Só que hoje não é meu aniversário — corrige Alice.
— Não, é claro que não. Desculpe.
— Também não dei um presente a você...
— Tudo bem. Esta noite já foi um presente.
Paramos de falar e eu penso em apontar algumas constelações, como fazem nos filmes. Aprendi todas elas de cor só para uma ocasião como essa, mas está muito nublado. Então, me pergunto se está escuro o suficiente para tentar um beijo, ou se ela está bêbada o suficiente para deixar.
— Brian, o que você vai fazer no Natal?
— Hã, não sei...
— Não quer passar com a gente?
— Onde?
— Comigo.
— Em Londres?
— Não, nós temos um pequeno chalé em Suffolk. Você pode conhecer Rose e Michael.
— Quem são Rose e Michael?
— Meus pais!
— Certo! Bem, eu adoraria, mas não posso deixar minha mãe sozinha...
— É claro que não, mas você pode vir depois do Natal, no fim de semana seguinte. Os meus pais estão sempre na deles. Então seríamos só nós dois a maior parte do tempo. — Ela pensa que eu preciso ser convencido a aceitar. — Podemos passear, ler, conversar, essas coisas...
— Combinado — respondo.
— Fantástico! Então, estamos combinados. Mas, agora, estou com frio. Vamos para casa.
Já passa da meia-noite quando chegamos ao alojamento dela, mas ainda há algumas pessoas andando pelos corredores com piso de madeira, os nerds, os insones e os drogados. Todos dizem Oi, Alice e olham para mim como se não acreditassem, mas eu não estou nem aí Estou ocupado pensando em como me despedir, a mecânica da coisa. Já na porta ela diz:
— É melhor eu ir direto para cama, tenho aula amanhã às 9h15.
— OK. Do quê...?
— Stanislavski e Brecht, O grande debate.
— Tudo bem, mas eles não são assim tão diferentes em tantos aspectos. Ainda que alguns considerem que suas filosofias são mutuamente exclu...
— Brian, eu preciso mesmo ir dormir.
— OK. Bem, obrigado por aceitar sair comigo.
— Brian, eu não aceitei. Eu quis sair com você — diz ela, inclinando-se para a frente num gesto rápido e dando um beijo bem perto da minha orelha.
É tudo muito rápido, como o bote de uma serpente, e meus reflexos não reagem a tempo. Por isso, só consigo estalar os lábios alto demais no ouvido dela e a porta se fecha.
E, mais uma vez, estou andando pelo cascalho no meu caminho para casa. Mas, enfim, deu tudo certo. Acho que foi legal. Fui convidado para um chalé. Parece que agora ela me acha interessante, mesmo que interessante não fosse bem o que eu estava querendo. Continuo me sentindo um pouco desconfortável com as razões pelas quais isso aconteceu, mas mesmo assim...
— Ei, Jackson!
Olho ao redor.
— Desculpe, eu quis dizer Brian. Brian, aqui em cima... — é Rebecca, debruçada na janela do primeiro andar, com uma longa camiseta preta e pronta para dormir.
— Como foram as coisas, garoto apaixonado?
— Ah, tudo bem.
— Então, o amor está no ar?
— Não amor. Gostar.
— O gostar está no ar. Achei mesmo que sim. Foi o que senti. Como se estivesse no ar. Muito bem, Brian. Fique firme, companheiro.
No caminho para casa, passo num posto 24 horas e me dou de presente um chocolate e uma latinha de Lilt com o dinheiro que economizei por ter me debulhado em lágrimas. São quase 2h da manhã quando chego a Richmond House. Há três avisos escritos à mão colados na porta...
19h30 Brian, sua mãe ligou. 22h45 Spencer ligou. Disse que está morrendo de tédio e vai ficar no posto de gasolina a noite inteira. Ligue para ele.
Brian, por favor não use o meu Apri sem me pedir antes.
17
PERGUNTA: O que Dorothy Gale precisa fazer para voltar para o Kansas?
RESPOSTA: Bater os saltos dos sapatos três vezes pensando “Não existe melhor lugar do que a nossa casa”.
Minha mãe ainda não havia chegado do Woolworths quando entrei em casa. Então, resolvi preparar uma caneca de chá, pular no sofá, pegar uma caneta e, metodicamente, anotar na contracapa da Radio Times o que iria assistir na televisão no Natal. Estou supercansado, o que, infelizmente, se deve mais à cerveja caseira de Josh e Marcus do que a qualquer fervor acadêmico. As últimas semanas do semestre passaram num borrão de festas com pouca gente, na casa de estranhos, e em competições de quem bebe mais na cozinha com os amigos de Josh e Marcus. Eram uns caras fortões e esportistas e umas meninas bronzeadas do time de lacrosse, todas com as golas levantadas, todas fazendo francês, todas da mesma cidade e todas com o mesmo cabelo louro puxado para trás. Inventei uma piada muito boa sobre esse tipo de garota e o lugar de onde elas vêm, Surrey, mas infelizmente não tenho a quem contar.
Não sei o que elas aprenderam nessas escolas particulares, mas, certamente, sabem beber. Sinto como se estivesse envenenado, cinzento, malnutrido e estou feliz de estar em casa, deitar no sofá, assistir à televisão. Não está passando nada de bom essa tarde, só um faroeste, e meus olhos vagueiam até minha foto de escola em cima da TV, tirada pouco antes de o meu pai morrer. Existe alguma coisa mais triste do que uma antiga foto de escola? Dizem que a câmera deixa a gente dez quilos mais gordo, mas essa parece que só aumentou as minhas espinhas. Estou parecendo um homem da Idade Média, vítima da peste, todo pegajoso e cheio de bolhas, e me pergunto como minha mãe aguenta ver a minha cara amarrada sempre que tenta olhar para a TV.
A foto me deprime tanto que desligo a televisão e vou até a cozinha colocar a chaleira no fogo e fazer mais chá. Enquanto a água ferve, fico observando o quintal pela janela, um espaço obscuro do tamanho de uma caixa de sapato que minha mãe mandou cimentar quando meu pai morreu, para não dar trabalho. Faço o chá e subo com as malas para o meu quarto. Minha mãe desligou o aquecedor para economizar energia, o quarto está um gelo, e me deito na cama vestido e fico olhando para o teto. Por alguma razão, a cama parece menor, como se fosse de criança, assim como o quarto todo. Sabe lá Deus por que, já que não cheguei a crescer, mas, depois de três meses, o quarto já parece o de outra pessoa. Tudo o que restou foram as coisas da infância, as pilhas de gibis, os fósseis no batente da janela, anúncios de hotéis, aeromodelos cobertos de pelo e poeira pendurados no teto, antigas camisetas da escola no armário. Me sinto um pouco triste e começo a pensar em Alice, e, depois de um tempo, caio no sono.
Faz muito tempo que não conversamos. As reuniões da equipe do Desafio pararam faz duas semanas, e, desde a ocasião, ela parece ter sido engolida por sua panelinha, uma gangue barulhenta de lindos garotos e garotas descolados que vivia no bar da escola ou dirigindo pela cidade. Eram uns sete ou oito espremidos num Citröen 2CV amarelo berrante esfumaçado, dando risada, tomando vinho tinto direto do gargalo e ouvindo Jimi Hendrix. Depois, voltavam para o belo apartamento de alguém para usar drogas estranhas e fazer sexo uns com os outros. Na verdade, o mais próximo que cheguei de Alice foi no bar da escola algumas noites atrás. Cheguei perto e falei: E aí?. E o pessoal respondeu E aí?, todos alegres e sorridentes, mas, infelizmente, não havia cadeira na mesa para eu me sentar com eles. Além disso, Alice precisava virar o pescoço para falar comigo, e há um limite de tempo para ficar à parte num grupo como esse, antes de pressentir que deveria mesmo era tirar as garrafas vazias da mesa. Claro que sinto desprezo por panelinhas de descolados convencidos e privilegiados desse tipo, mas, infelizmente, isso não me impede de querer ser um deles.