— Preciso de livros específicos, mãe...
— Então, você não vai mesmo passar o Ano-novo em casa?
— Acho que não, mãe, não. — Ouço um suspiro tão triste que imagino que, se me virar, vou vê-la morta no chão do quarto. Agora, irritado, eu digo: — De qualquer maneira, você vai ficar enchendo a cara com o tio Des e a gente nem vai se ver...
— Eu sei, mas é a primeira vez que você não vai estar aqui, só isso. E eu não gosto de andar pela casa sozinha...
— Bem, um dia isso ia acontecer, mãe. — Mas nós dois estamos pensando a mesma coisa. Não deveria ter acontecido, não desse jeito, ainda não. Faz-se um silêncio, e eu digo: — Agora vou me vestir, mãe, se você não se importa...
Ela dá um suspiro e se levanta da cama.
— Não é nada que eu não tenha visto antes.
Aconteceu recentemente. Ano-novo de 1984 para 1985, quando cheguei em casa tão bêbado que vomitei na cama. Ainda bem que tenho apenas uma vaga lembrança da minha mãe me ajudando a tomar banho ao amanhecer e lavando Pernod, cerveja e frango com fritas mal-digeridos com a mangueirinha do chuveiro. Faz só 12 meses que isso aconteceu. Ela nunca mencionou esse fato, e gosto de acreditar que talvez não tenha acontecido, mas tenho certeza de que aconteceu.
Às vezes, acho que faltam mais psiquiatras no mundo...
Minha mãe está um pouco mais animada no nosso beijo de despedida nos degraus da frente de casa, mas continua querendo que eu leve mais comida. Rejeito um saco de pão de forma Mighty White, 1 litro de Dry Blackthorn, uma torta, um pote de 250 ml de creme de leite, um saco de 2 quilos de batata, um pacote de Jaffa Cakes, uma garrafa de Iced Magic sabor menta e outra de 2 litros de óleo de girassol. E cada não, obrigado é uma facada nas costas dela. Depois disso, saio carregando minha mala pela rua sem olhar para trás, para o caso de ela começar a chorar. No caminho para a estação de trem, saco uma nota de cinco libras do caixa e paro no mercado para comprar uma garrafa de vinho para os Harbinson. Como quero levar alguma coisa de qualidade, acabo torrando 3 libras num vinho com uma bela garrafa.
20
PERGUNTA: Que termo socioeconômico definia os artesãos que habitavam as cidades muradas da França no século XI, ocupando uma posição entre os camponeses e os senhores feudais?
RESPOSTA: Burguesia.
Quando o trem parte de Southend, olho pela janela e vejo as ruas molhadas e desertas; o punhado de lojas abertas numa tentativa pouco entusiasmada de é pegar ou largar. Os quatro dias entre o Natal e o Ano-novo são, com certeza, os mais longos e desagradáveis do ano, uma espécie de domingo arrastado. Mas os feriados bancários são piores ainda. Acho que vou morrer mais ou menos às 14h30 de um feriado bancário. Morto por tédio terminal.
Troco de roupa em Shenfield, onde o almoço é uma lata de energético Lucozade, um pacote de salgadinhos Hula Hoops e um chocolate Twix comprados num quiosque. E aí só tenho tempo de ver como está o meu rosto no espelho do banheiro da estação antes de voltar ao trem.
Ao sair do subúrbio e entrar em Suffolk, a chuva se transforma em neve, a qual raramente chega a Southend. A combinação das luzes da rua, o ar do estuário e a massa de calor tendem a transformar a neve numa espécie de caspa fria e úmida, mas ali, naquela paisagem ao pôr do sol, parece densa e limpa. Leio a primeira página de Os Cantos, de Ezra Pound, cinco vezes sem entender uma palavra; então, desisto e volto a observar a paisagem. Emocionante. Dez minutos antes de chegar à estação, pego meu sobretudo e o cachecol e dou uma olhada no meu reflexo na janela do trem. Gola para cima ou para baixo? Estou tentando um visual tipo O terceiro homem do Graham Greene, mas só pareço mesmo alguém saído de um clipe do Ultravox.
Cinco minutos antes da chegada, ensaio o que vou dizer ao reencontrar Alice. Não me sinto tão nervoso desde meu papel de Jesus em Godspell, quando tive de tirar a camisa para ser crucificado. Não consigo nem sorrir direito. Sai um sorriso torto de boca fechada que dá a impressão de que sofri um derrame, mas, ao abrir a boca, meus dentes são uma mistura de bege e preto, como um saco de peças de palavras cruzadas. Uma vida inteira de legumes e frutas frescas fez com que os dentes de Alice Harbinson sejam perfeitos. Imagino o dentista examinando sua boca e chorando diante daquele brilho, daquela pureza, daquela brancura esplendorosa.
Quando o trem para na estação, Alice está esperando no fim da plataforma, protegida da neve por um sobretudo preto que parece muito caro e que quase toca o chão, o pescoço envolto num cachecol de lã cinza — e me pergunto onde ela guardou a balalaica. Ela não corre para me ver, mas, ao menos, anda um pouco mais rápido, e à medida que seu rosto vai entrando no foco, consigo ver que sorri, depois ri, a pele mais clara, os lábios mais vermelhos. E há alguma coisa mais suave e calorosa, em comparação ao seu jeito na faculdade, como se ela estivesse de folga. E ela me abraça e diz que sentiu minha falta, que está muito contente de eu estar ali e que vamos nos divertir muito, e, por um momento, isso parece a felicidade suprema, ali numa estação de trem do interior, com Alice debaixo da neve. Até eu perceber um homem bonito, sombrio e mal-humorado que suponho ser o pai de Alice. Uma espécie de Heathcliff de jaquetão impermeável até a cintura.
Se tivesse uma franja eu a afastaria da testa, porém, em vez disso, estendo a mão. Venho testando apertos de mão há algum tempo, pois imagino que é o que homens adultos devem fazer, mas o Sr. Harbinson olha para mim como se eu tivesse feito uma coisa desajeitada do século XVIII, como se eu fizesse mesuras ou coisa assim. Por fim, ele aceita e pega minha mão, e a aperta com muita força, como que para mostrar que poderia fraturar o meu crânio se quisesse. Depois, vira-se sai andando.
Arrasto minhas malas até o Land Rover verde no estacionamento da estação enquanto Alice vai andando na frente com os braços em volta do pescoço do pai, tal como um namorado ou algo do gênero. Se eu abraçasse minha mãe pelo pescoço daquele jeito, ela chamaria o Serviço Social, mas o Sr. Harbinson parece no mesmo ritmo e abraça Alice pela cintura. Eu sigo trotando atrás.
— Brian é a nossa arma secreta no time. Ele é o gênio sobre o qual falei a você — diz Alice.
— Bem, não sei se gênio é a palavra certa... — observo.
— Com certeza não é — concorda o Sr. Harbinson.
Seguimos de carro pelo campo. Estou no banco de trás no meio de galochas e botas sujas de lama e mapas molhados, enquanto Alice mantém um monólogo narrando todas as festas em que esteve e os velhos amigos que encontrou, e eu presto atenção a cada palavra para detectar possíveis Intrusos Românticos — um jovem ator bonito talvez, um escultor musculoso chamado Max ou Jack ou Serge. Mas a barra parece estar limpa, até agora. Talvez ela esteja se censurando por estar na frente do pai. Mas duvido. Acho que Alice é um daqueles tipos estranhos de pessoa que se comportam exatamente da mesma maneira na frente dos pais e dos amigos.
O Sr. Harbinson escuta e dirige em silêncio, emanando um sutil zumbido de hostilidade. Ele é superforte, e fico imaginando por que alguém que faz documentários para a BBC2 precisa ter o físico de um pedreiro. E é muito peludo — o tipo de homem que faz a barba duas vezes por dia, mas é óbvio que é muito inteligente. É quase como se tivesse sido criado por lobos, mas lobos que sabiam o valor de uma boa educação. Também parece impossivelmente jovem, bonito e descolado para ser pai, como se ter uma família fosse uma coisa em que ele caiu de paraquedas entre um show do Hendrix e uma viagem de LSD.
Afinal, chegamos ao Chalé Blackbird. Só que chalé não é bem a palavra. O lugar é enorme, lindo, o tipo de casa que se esparrama, como um monte de celeiros adaptados e casas de fazenda, quase uma vila inteira, tudo aninhado para abrigar a residência de campo da família Harbinson; todo o luxo de uma casa majestosa, mas sem os inconvenientes políticos de uma conotação aristocrática. Com a neve, é como um cartão de Natal animado. Tem até fumaça saindo da chaminé, e é tudo muito rural e do século XIX, com exceção do carro esporte, o 2CV de Alice, e uma piscina coberta de lona onde antes ficava o curral das vacas. Na verdade, qualquer vestígio agrícola foi apagado há muito tempo. Até os cachorros parecem de classe média: dois labradores que chegaram aos saltos como que dizendo muito prazer em conhecê-lo, conte-nos tudo sobre você. Não me surpreenderia se eles tivessem um piano de cauda.