— Esses são Mingus e Coltrane! — apresenta Alice.
— Olá, Mingus e Coltrane. — Ocorre um ligeiro lapso de etiqueta canina quando eles começam a farejar as carnes frias na minha mala durante o percurso até a casa. Ergo, então, a mala nos braços.
— O que você acha?
— É adorável. Maior do que eu esperava.
— Mamãe e papai compraram por, mais ou menos, cinco guinéus nos anos 1960. Venha conhecer Rose — e levo um segundo para perceber que Rose é a mãe de Alice.
Existe um velho clichê chauvinista que diz que as mulheres se transformam nas mães quando você se casa com elas, porém, no caso da mãe de Alice, eu não me incomodaria. Não que vá me casar com Alice ou nada disso, mas a Sra. Harbinson é linda. Quando entramos na cozinha, um enorme celeiro todo de cobre e carvalho, ela está diante da pia ouvindo The Archers, e, por um segundo, penso em Julie Christie descascando cenouras. Ela é pequena, com rugas suaves ao redor de olhos azuis, um cabelo louro e ondulado. Marcho adiante pelo chão de ladrilhos, braço estendido feito um soldadinho de chumbo, determinado a insistir nessa coisa de aperto de mão.
— Então, esse é o Brian de quem tanto ouvi falar... — comenta ela, sorrindo e balançando a ponta do meu dedo com as mãos úmidas, e, então, tenho um flashback de uma professora por quem eu era apaixonado aos 9 anos.
— Muito prazer, Sra. Harbinson — digo, parecendo um menino de 9 anos.
— Oh, por favor, não me chame de Sra. Harbinson. Faz eu me sentir mais velha. Pode me chamar de Rose.
Quando ela se adianta para me dar um beijo no rosto, tenho uma ação reflexa de lamber os lábios e o beijo acaba saindo todo babado, com um estalido exagerado que quase ecoa pelos ladrilhos. Chego a ver minha saliva brilhando um pouco abaixo do seu olho. Ela limpa discretamente com as costas da mão antes daquilo tudo evaporar, enquanto finge estar arrumando o cabelo. O Sr. Harbinson se interpõe entre nós e beija a outra face, a seca, marcando o território.
— E como prefere ser chamado, Sr. Harbinson? — pergunto, todo animado.
— De senhor Harbinson.
— Michael! Não seja chato... — adverte Rose.
— ...Ou Sir. Pode me chamar de Sir...
— Não leve a sério — intervém Alice.
— Trouxe um vinho — digo, tirando a garrafa da mala e entregando a ele. O Sr. Harbinson olha para o vinho como se fosse uma garrafa de mijo.
— Muito obrigada, Brian! Você será sempre bem-vindo! — diz Rose. O Sr. Harbinson não parece ter tanta certeza.
— Venha! Vou mostrar o seu quarto — Alice me puxa pelo braço, e eu a sigo pelas escadas enquanto o Sr. e a Sra. Harbinson cochicham atrás de mim.
Na maisonette da Archer Road, há um ponto, mais ou menos na metade da escada, do qual, se você esticar um pouco o pescoço, consegue ver todos os
cômodos da casa. O Chalé Blackbird não tem nada disso. É enorme. Meu quarto, que foi de Alice, fica na parte alta da casa, sob antigas vigas de carvalho, na Ala Leste ou coisa assim. Uma das paredes é forrada de fotografias de infância de Alice ampliadas — de avental florido assando bolinhos; colhendo framboesas de macacão; interpretando Olivia numa produção da escola de Noite de reis e, acho, em A alma boa de Setsuan, com um bigode pintado, e vestida de saco de lixo preto escrito punk-rocker, numa festa chique levantando aquele dedo para a câmera. Há uma polaroide dos pais dela aos 20 anos, felizes proprietários de um dos primeiros sofás em estilo pufe, parecendo integrantes da banda Fleetwood Mac, com coletes bordados combinando e fumando o que podem ou não ser cigarros. Prateleiras de livros infantis indicam que Alice foi uma grande fã de histórias: Tove Jansson, Ingrid Lindgren, Eric Kastner, Herge, Goscinny, Uderzo, Saint-Exupery — literatura infantil mundial — e, meio fora de lugar, uma desgastada edição de Lace. Uma montagem nota 10 de Madonnas de Uffizi e uma tirinha do Xereta recortada. Diplomas emoldurados proclamam que Alice Harbinson consegue nadar 1.000 metros, tocar oboé até o nível 6 e piano até o nível 8 — simultaneamente, pelo visto. Meu quarto é O museu de Alice Harbinson. Não sei como acreditam que eu consiga dormir ali.
— Acha que vai ficar confortável aqui? — pergunta.
— Ah, eu dou um jeito... — Alice me observa sem nenhuma vergonha fingida ou falsa modéstia enquanto examino as fotografias. Esta é a minha vida. Vida boa, não é? Aos 4 anos, ela era tudo o que se podia desejar de uma menina de 4 aninhos; aos 14, ia muito bem, obrigada.
— Não adianta procurar o meu diário. Eu escondi. Se sentir frio, e você vai sentir, tem um cobertor no armário. Deixa eu ajudar a arrumar suas coisas. E aí, o que você quer fazer hoje à noite?
— Ah, sei lá, ficar por aí. Vai passar Quanto mais quente melhor na TV.
— Desculpa, mas aqui não tem televisão.
— Sério?
— Papai não gosta muito de TV.
— Mas ele é produtor de TV!
— Em Londres, temos televisão, mas ele acha que, no campo, é errado... Que cara é essa?
— Nada. Só pensando... Três casas, uma TV. Com a maioria das pessoas, é o contrário.
— Não precisa dar uma de socialista, Brian, ninguém está ouvindo. Cuecas samba-canção, é? — Diz Alice, segurando a minha roupa de baixo. Uma leve trepidação erótica paira entre nós, e me sinto muito grato por minha mãe ter passado as cuecas a ferro. — Achei que você era o tipo de cara que usava sunga. — Fico tentando entender se isso é bom ou ruim até Alice dar um grito: — Ahhh, meu Deus! O que é isso...?
Ela encontrou a embalagem de alumínio com as carnes frias na minha mala. Eu tento pegar.
— Ah, isso é coisa da minha mãe...
— Deixa eu ver...
— Não é nada, de verdade.
— Contrabando! — Ela abre o pacote. — Carne? Você contrabandeou carne para nossa casa!
— Minha mãe ficou preocupada por eu não comer proteína.
— Quero um pedaço... Que delícia! — e pega um pedaço de bacon cozido e pula na cama. — Hummmm! Um pouco seco...
— É uma receita especial da minha mãe. Ela cozinha na noite anterior, corta em fatias, deixa no aquecedor e dá o toque final com um secador de cabelo.
— Olha, não deixe Rose pegar você com isso... Ela vai ficar para morrer. O Chalé Blackbird é zona estritamente vegetariana...
— E o que Mingus e Coltrane comem?
— O mesmo que nós. Vegetais, granola, arroz, macarrão... — Eles alimentam os cachorros com macarrão. — O que você tem aí?
— É o seu presente de Natal. — Entrego o embrulho com o LP. — É uma raquete de tênis.
Ela olha o cartão-postal, um romântico e provocativo Chagall colado no álbum. Pensei muito e com afinco na mensagem. Escrevi vários rascunhos antes de ficar com o eloquente e emotivo: Para Alice, minha mais nova e mais melhor (mais melhor?!?) amiga. Com amor para sempre, Brian. Gostei muito do humor irônico de (mais melhor?!?) com o elemento mais nova e mais melhor sem prejudicar a sinceridade da emoção, mas ela nem se dá ao trabalho de ler e começa a rasgar o papel de embrulho.