Minha mãe tenta dizer alguma coisa, mas não consegue emitir as palavras, o que deve ter algo a ver com meu pai estar orgulhoso ou algo assim, porém ela decide deixar para mais tarde, dá meia-volta e sai do quarto. Sento na mala para poder fechar e depois deito na cama e olho ao redor do meu quarto pela última vez. É o tipo do momento em que, se eu fumasse, estaria fumando.
Não consigo acreditar que isso está mesmo acontecendo. É a independência da maioridade, é o que eu sinto. Não deveria haver algum tipo de ritual? Em certas tribos africanas remotas, haveria um incrível rito de quatro dias de cerimônias de passagem envolvendo tatuagens e potentes drogas alucinógenas extraídas de sapos e anciãos espalhando sangue de macaco no meu corpo, mas aqui os ritos de passagem se resumem a três cuecas novas e a jogar o edredom num saco de lixo.
Quando chego ao andar de baixo, vejo que minha mãe fez um pacote para mim: duas caixas de papelão grandes com quase todo o conteúdo da casa. Claro que a frigideira está lá, astutamente escondida embaixo de um aparelho de jantar completo, assim como a torradeira que afanei da Ashworth Electricals, uma chaleira, um exemplar de Receitas maravilhosas com carne moída e uma cesta com seis pães de sal e um saco de pão de forma. Tem até um ralador de queijo, e ela sabe que eu não como queijo.
— Não posso levar tudo isso, mãe — contesto, e daí os simbólicos e tocantes últimos momentos da minha vida na casa da minha infância são desperdiçados discutindo com minha mãe se vou precisar ou não de um batedor de ovos — sim, claro que vai ter uma grelha para fazer torradas, sim, preciso do som e dos alto-falantes. Quando, enfim, terminam as negociações, reduzimos tudo à minha mala, a uma mochila com meu som e os livros, a dois sacos de lixo cheios de edredons e travesseiro e, por conta da insistência da minha mãe, a vários panos de prato.
Enfim, chega o momento. Insisto bastante para minha mãe não me levar à estação de trem, porque, por alguma razão, a coisa toda parece mais simbólica e intensa sem ela. Fico de pé na porta, enquanto ela pega a bolsa e, com toda a solenidade, enfia uma nota de 10 libras na minha mão, bem dobradinha, como se fosse um rubi.
— Mãe...
— Vamos... Pegue...
— Vou ficar bem, sério...
— Vai, mas se cuida...
— Pode deixar...
— Tente comer frutas de vez em quando...
— Vou tentar...
— E... — Chegou o momento. Ela engole em seco e diz: — Você sabe que seu pai estaria orgulhoso de você, não sabe? — Dou um beijo rápido em seus lábios secos e franzidos e saio correndo para a estação de trem, com piques curtos e da melhor maneira possível.
Na viagem de trem, coloco os fones de ouvido e ouço uma fita, especialmente preparada, das minhas músicas favoritas de todos os tempos da Kate Bush. É uma coletânea muito boa, mas, como não temos um som de qualidade em casa, é comum ouvir minha mãe gritar no andar de baixo que as costelas estão prontas no meio de The Man With The Child In His Eyes.
Com uma postura solene, abro minha edição novinha em folha de A rainha das fadas, de Spenser, que vamos ler no primeiro semestre. Gosto de pensar que sou um bom leitor, com a cabeça aberta e tudo mais, mas isso me parece meio besteira. Por isso, deixo A rainha das fadas de lado após as primeiras 18 linhas e prefiro me concentrar na Kate Bush, no interior da Inglaterra que passa pela janela, e em parecer pensativo, enigmático e interessante. Tenho uma janela grande, quatro lugares e uma mesa só para mim, uma lata de Coca-Cola e um chocolate Twix, e a única coisa que poderia melhorar ainda mais minha vida seria uma mulher atraente entrando, sentando-se à minha frente e dizendo alguma coisa como...
— Com licença, mas notei que está lendo A rainha das fadas. Por acaso, está indo estudar literatura na faculdade?
— Sim, sim, estou! — eu responderia.
— Que maravilha! Tudo bem se eu me sentar ao seu lado? Meu nome é Emily, a propósito. Responda-me uma coisa: você conhece o trabalho da Kate Bush...?
E minha conversa é tão sofisticada, urbana e espirituosa que, quando o trem para na estação, rola uma energia sexual tão grande entre nós que Emily está debruçada na mesa, mordendo os lábios carnudos com uma certa timidez e dizendo:
— Olha, Brian, a gente mal se conhece, e eu nunca disse isso a ninguém, mas será que a gente não poderia ir... a um hotel ou coisa assim? É que acho que não vou resistir muito mais — e eu concordo com um sorriso blasé, como quem diz por que será que isso sempre acontece quando eu pego um trem?, pego na mão dela e a conduzo ao hotel mais próximo...
Mas... espere um minuto! Para começar, o que vou fazer com a minha bagagem? Não dá para chegar num hotel carregando dois sacos de lixo, dá? E tem também o custo. O dinheiro que ganhei trabalhando no verão já foi gasto com moradia e o cheque da bolsa-auxílio só chega na semana que vem, e, mesmo sem nunca ter ficado num hotel, eu sei que não vai ser barato, quarenta, cinquenta pratas talvez. E, vamos encarar, a coisa toda vai durar o quê? Dez minutos, se eu tiver sorte; quinze no máximo, e não quero chegar no momento crítico do êxtase sexual preocupado com dinheiro. Acho que Emily poderia sugerir de a gente dividir meio a meio o valor do quarto, mas eu teria de recusar, senão ela vai achar que sou um pobretão. E, mesmo que insista e eu concorde, ela ainda teria que me dar o dinheiro e, seja antes ou depois de a gente fazer amor, isso vai tirar um pouco da melancolia, do anseio agridoce do encontro. Será que ela vai pensar que sou esquisito por querer ficar depois e aproveitar ao máximo as ofertas do hotel? Querida Emily, fazer amor com você foi, ao mesmo tempo, lindo e estranhamente pungente. Será que agora pode me ajudar a pôr as toalhas na mochila? Além disso, será que é uma boa ideia ir direto para a cama com uma pessoa que vai estudar comigo? E se a tensão sexual entre nós prejudicar nosso desempenho acadêmico? Na verdade, no final das contas, talvez não seja uma boa ideia. Talvez seja melhor esperar até conhecer Emily um pouco melhor antes de me envolver numa relação.
Quando o trem chega ao destino, realmente me sinto aliviado por Emily ser apenas fruto da minha imaginação.
Arrasto meus sacos de lixo e a mala para fora da estação, que fica numa colina com vista para a cidade. É a segunda vez que venho aqui desde a minha entrevista. Tudo bem, não é Oxford ou Cambridge, mas é a terceira melhor opção. O importante é que a cidade tem torres com pináculos. Daqueles que aparecem nos sonhos.
3
PERGUNTA: Que romance popular de Frances Hodgson Burnett, escrito em 1886 e dramatizado várias vezes desde então, inspirou a moda de jovens de cabelos longos e cacheados em ternos de veludo e colarinhos rendados?
RESPOSTA: O pequeno lorde.
Isto é o que coloquei na seção de Hobbies e Interesses do meu formulário do Departamento de Acomodações da Universidade: Leitura, Cinema, Música, Teatro, Natação, Badminton, Socializar!
Não é uma lista muito reveladora, claro. Nem muito verdadeira. Leitura é verdade, mas todo mundo menciona leitura. O mesmo com Cinema e Música. Teatro é mentira — eu odeio teatro. Na verdade, até já participei de umas peças, mas nunca frequentei muito teatro, a não ser uma encenação educacional sobre segurança na estrada que, mesmo apresentada com elegância, brio e empolgação, não me disse muito em termos de estética. Mas a gente tem de fingir que gosta de teatro; é a lei. Natação não é necessariamente verdade também. Eu sei nadar, só que igual a um animal se afogando. Mas achei que deveria colocar uma coisa um pouco esportiva. O mesmo com Badminton. Quando digo que me interesso por badminton, o que, na verdade, estou dizendo é que, se alguém apontasse uma arma para a minha cabeça e me forçasse a praticar um esporte, sob ameaça de morte, e se recusasse a aceitar palavras cruzadas como esporte, então escolheria badminton. Ou seja, não pode ser tão difícil assim, pode? Socializar! também é um eufemismo. Solitário e Sexualmente Frustrado seria mais exato, mas também mais estranho. A propósito, o ponto de exclamação no final de Socializar! foi para expressar uma maneira irreverente, despreocupada e casual de ver a vida.