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— Mas você arranja outro emprego, não é?

— Ah, com certeza! Um ladrãozinho desqualificado, desempregado e com ficha na polícia. Devo ser uma puta joia rara no mercado de trabalho atual. Quer outra caneca?

— Talvez meia...

— Bem, você vai ter que pagar, pois eu estou meio duro, financeiramente falando.

— Então, eu volto ao balcão, pego as cervejas e acabo me conformando em não conseguir ler O rapto da Madeixa essa noite.

Desnecessário dizer que fomos os últimos a sair do pub. Depois de anunciarem os últimos pedidos, Spencer se encarrega de despejar as bebidas deixadas pelos outros nos nossos copos, coisa que não faço desde os 16 anos, e, quando chegamos a Richmond House, estamos bem bêbados. Bebemos o resto da cerveja caseira leitosa e abrimos as duas latas da Special Brew que estão na bagagem de Spencer, além do Daily Mirror e uma tortinha de carne pela metade. Falo sobre o Ano-novo e Alice, da minha versão do encontro com a mãe nua na cozinha, e Spencer relaxa um pouco e ri pela primeira vez. É uma risada genuína, generosa, não um riso desdenhoso ou dissimulado.

Levanto, mudo o disco e coloco The Kick Inside, o notável e provocante álbum de estreia de Kate Bush. Spencer retoma o comportamento anterior, rindo durante toda a execução de The Man With The Child In His Eyes e tirando sarro da minha coleção de discos e cartões-postais na parede. Para mudar de assunto, ponho a fita cassete que ele fez para mim, Compilação para a faculdade do Bri, e nos jogamos bêbados no futon e ficamos vendo o teto se enroscar, se deformar e rodar por cima de nossas cabeças e ouvindo Gil Scott-Heron cantando The Bottle.

— Você sabe que está nessa, não sabe?

— No quê?

— Nessa música, escute... — e sai engatinhando até o sistema de som, aperta stop e rebobina. — Escuta com atenção... — e a música começa, uma

gravação ao vivo, a primeira parte apenas com órgão elétrico e percussão, até que começa um solo de flauta de jazz, e Gil Scott-Heron diz algo que não consigo ouvir direito...

— Entendeu? — pergunta Spencer, animado.

— Não...?

— Escuta de novo, surdo, preste atenção — e aperta para rebobinar, stop, play, aumenta o volume ao máximo e, dessa vez, ouço Gil Scott-Heron dizer, com toda a clareza: Brian Jackson na flauta para vocês!, e a plateia aplaudindo.

— Ouviu?

— Ouvi!

— É você!

— Brian Jackson na flauta!

— De novo...

E lá está de novo… Brian Jackson na flauta para vocês!

— Isso é incrível! Nunca tinha ouvido...

— É porque você nunca escuta as compilações que eu faço para você, seu bastardo filisteu — e engatinha de volta para o futon, deita de costas e ficamos ouvindo o jazz, ou soul, ou funk, ou seja lá o que isso for, e decido explorar o mundo da black music com mais atenção no futuro.

— Então, Alice é a garota de que você gosta? — pergunta ele.

— Eu não gosto dela, Spencer. Eu a amo...

— Você a ama...

— Aaaaaaaaamo...

— Você aaaaaaama...

— Amo de maneira absoluta, completa, total e com todo o meu coração...

— Achei que você amasse Janet Parks, a vadia volúvel...

— Janet Parks é uma vaca, se comparada a Alice Harbinson. Não é Janet Parks, mas Alice quem amo / Quem compararia um corvo a uma pomba?

— Como é que é?

— Sonho de uma noite de verão, segundo ato, cena três.

— Jackson, seu retardado... E aí? Eu vou conhecer essa Alice?

— Talvez... Tem uma festa amanhã à noite, se você ainda estiver aqui.

— Quer que eu fale bem de você?

— Não adianta, cara. Como eu disse, ela é uma deusa. E quanto a você?

— Nada, cara. Você me conhece... Eu sou um robô.

— Deve ter alguém que você ame...

— Só você, cara. Só você...

— Tudo bem, eu também te amo cara, mas não é bem um amor sexual e romântico, né?

— Ah, mas claro que é sexual. Por que você acha que eu vim de tão longe? É porque eu quero você. Me dá um beijo, garotão! — Spencer pula em cima de mim e senta-se no meu peito, fazendo barulhos estalados e molhados com a boca. Quando tento resistir, acaba virando uma luta...

— Vamos lá, Bri, desista... Você sabe que também quer...

— Sai de mim!

— Um beijo, meu amor!

— Spencer! Isso dói!

— Não lute contra isso, querido...

— Sai de cima de mim! Você sentou nas minhas chaves!

Alguém bate na porta e vemos Marcus, piscando, os olhos pequenos atrás dos óculos Ray-Ban tortos, usando seu roupão vermelho-rubi.

— Brian, são 2h15, há alguma possibilidade de você desligar o som?

— Desculpe, Marcus! — concordo, engatinhando até o som.

— Olááááá, Marcus — diz Spencer.

— Olá... — resmunga Marcus, empurrando os óculos para cima do nariz.

— Marcus é um nome adorável... Marcus...

— Marcus, esse é o Spencer, meu melhor amigo! — explico, carregando o S.

— Só não faz muito barulho, tá?

— OK, Marcus. Foi um prazer, Marcus... — E assim que ele fecha porta: — Tchau, Marcus, seu punheteeeeiro...

— Shhhhh! Spencer!

Mas, sem música, não parece mais tão divertido. Então, com alguma dificuldade e bastante barulho, tiramos o pesado estrado de ferro de trás do armário e colocamos ao lado do colchão. Há um breve debate sobre quem deve dormir onde, mas Spencer fica com o futon, afinal, ele é visita, e me deito no estrado vazio, todo vestido, debaixo de uma pilha de casacos e toalhas, com a cabeça num travesseiro de poliéster de 2cm de espessura e o chão rodando embaixo de mim, doido para voltar a ficar sóbrio.

— Então, quanto tempo você vai ficar, Spency?

— Não sei. Uns dois dias, talvez... Só até resolver as coisas na minha cabeça... Tudo bem pra você, cara?

— Claro que tudo bem. Fique quanto quiser. É pra isso que servem os amigos, não é?

— Valeu, cara!

— Valeu...

Depois de um tempo, pergunto:

— Mas você tá legal, né, cara?

— Não sei, cara. Não sei. Não tenho certeza. E você?

— Eu tô legal.

Depois de um tempo, ele diz:

— Brian Jackson na flauta!

E eu:

— Brian Jackson na flauta...

Ele:

— E a multidão vai à loucura...

E nós dois caímos no sono.

27

PERGUNTA: Como o calumet, um objeto cerimonial central na cultura dos ameríndios, costuma ser conhecido?

RESPOSTA: Cachimbo da paz.

Mais ou menos às 4h30 da manhã eu vomito.

Felizmente, consigo cambalear pelo corredor e chegar ao banheiro bem a tempo, mas, quando levanto a cabeça da pia, os lábios molhados, pálido e trêmulo e vejo meu reflexo no espelho, quase vomito de novo, pois fica claro que, durante a noite, me transformei numa espécie de homem-lagarto terrível, com escamas no formato de diamantes num só lado do rosto. Cubro a boca para conter o grito, mas logo percebo que são só as marcas do estrado de arame na minha cara e volto para a cama.

O toque do despertador, às 8h15, é como um palito de gelo no meu ouvido, e fico deitado ouvindo a chuva bater na janela. Deus sabe que já tive outras ressacas, mas essa é de um novo tipo, estranho, quase alucinógeno. É como se todo meu sistema nervoso tivesse sido reajustado, e a menor sensação, a chuva lá fora, a luz da luminária, o cheiro da lata vazia de Special Brew que rolou para baixo da cama, tudo tem um efeito pior. Cada uma das minhas terminações nervosas parece viva, desconfortável e com espasmos, até as mais internas do meu corpo. Se eu me deitar quieto e me concentrar, chego a sentir a forma e a localização dos meus órgãos: os pulmões rugindo, úmidos, a transpiração exausta da massa amarelo-cinzenta do fígado jogado contra a coluna, os rins inchados e doloridos com hematomas, o intestino grosso ardendo, agitado. Tento me mexer para tirar esta última imagem da cabeça, mas o barulho do meu cabelo farfalhando contra o travesseiro se amplifica tremendamente. Por isso, continuo deitado bem quieto de lado e olho para Spencer, a poucos metros, a boca um pouco aberta, a baba encharcando meu travesseiro. Estou perto o suficiente para sentir o cheiro do seu hálito, que é rançoso, úmido e quente. Cara! Eu tinha me esquecido do corte de cabelo skinhead. Ele parece um fascista, um fascista bonito e carismático, mas esse é o pior tipo, conforme vemos na história. E se as pessoas me virem com ele na festa hoje à noite e acharem que sou amigo de um fascista? Talvez ele não fique até a noite. Talvez volte para casa. Talvez fosse melhor.