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A conversa está claramente tomando uma intrigante dimensão pessoal. Então, inclino-me na mesa e apoio a cabeça no vidro molhado, num estilo que acredito denotar um tipo de sensibilidade melancólica, e falo em voz baixa:

— Então, você já teve, hã... experiências ruins, emocionalmente falando?

Rebecca fica estática, a caneca na metade do caminho para a boca, e olha por cima dos ombros.

— Desculpe... Você está falando comigo?

— É uma pergunta justa, não é?

— Não é da sua conta! O que você quer que eu diga? Que papai nunca me deixou ter um pônei? Fiquei bêbada e queria um pouco de contato humano, sei lá, e avancei e fui rejeitada. Não é nada demais. Não é só porque as pessoas nessa porra de lugar sofrem de uma puta incontinência emocional que eu tenha de ser assim...

— Acho que você não devia praguejar tanto.

— Praguejar? Uau...!

— Acho que praguejar o tempo todo tira a eficiência dos palavrões.

— E quem é você, a Mary Poppins? Que merda! — diz ela, sorrindo um pouquinho, que é o máximo que posso esperar, acho. Beberica o chá, olha pela janela e fala, casualmente: — Mas, se você quer saber, meu último relacionamento terminou numa clínica de aborto. Então... Bem... Não sou tão liberal e tranquila em relação a essas coisas com algumas pessoas. É só isso.

Não sei como reagir. Ou melhor, sei como reagir a partir de um ponto de vista político, mas não sei bem como reagir do ponto de vista humano. Não sei o que fazer com a minha cara. Talvez a coisa certa fosse não ficar muito sério, não fazer estardalhaço.

— Quem era ele?

— Só um cara da minha cidade, um cara com quem cometi o erro de transar. Ninguém que você conheça — afirma, fazendo furos no meu guardanapo amassado.

— E ele deixou você por causa do...?

— Não, claro que não. Bem, não exatamente. De maneira alguma. Era complicado... — ela suspira e olha de relance para mim e, depois, volta ao guardanapo. — Foi um cara chamado Gordon. Fiquei com ele no último ano do colégio. O primeiro amor... Essa bobagem... Estávamos juntos há mais ou menos seis meses e íamos viajar de trem pela Europa naquele verão, depois dos exames finais. Daí, iríamos morar um ano em algum lugar no exterior, ver como as coisas iam funcionar, se a gente queria... Sei lá... Então, percorremos a Europa, vimos as paisagens, dormimos em praias, tudo muito sonho de amor juvenil, e acabei ficando grávida a caminho da Espanha. Conversamos e decidimos o que fazer. Voltamos e tomamos as providências. Ele disse que iríamos passar por aquilo juntos, que ele ficaria ao meu lado, e ficou. Mas só por uma semana e meia. Pronto. Foi isso.

— E você... hã... o amava?

Ela faz uma careta, contorce os lábios e não responde. Só olha pela janela e volta ao guardanapo amassado. Não sei o que dizer, mas sinto que devo dizer alguma coisa.

— Bem... Acho que você fez a coisa certa na época.

Os olhos de Rebecca lampejam nos meus.

— Brian, eu sei que fiz a coisa certa. Não estava pedindo a sua aprovação...

— Não, eu sei...

— …e também não precisa ficar falando nessa voz apalermada...

— Que voz?

— Você sabe que voz. Abortos acontecem, sabe. Muito mais do que você imagina...

— Eu sei...

— …e também não é preciso se enrolar em posição fetal por causa disso, nem rastejar para um canto e ficar lendo A redoma de vidro, sabe. A maioria das mulheres segue em frente...

— Sim...

— …Então, vamos mudar de assunto, tá?

— Ok...

— Essa barra de Mars é sua? — pergunta Rebecca, e tenho um pequeno sobressalto, pois não lembro se deveríamos ou não estar boicotando o chocolate Mars.

— Uh-hum.

— Então, dê isso aqui. — Obediente, entrego o chocolate. Ela dá uma mordida e mastiga por um tempo. — Por que tudo o que a gente come e bebe é marrom? Nunca vi tanta comida marrom. Não faria mal comer umas frutas ou vegetais de vez em quando, sabe...

— Você parece minha mãe.

— Bem, ela é uma mulher sábia. Você devia escutar o que ela diz. E o que eu digo também. — Dá outra mordida. — Então, você encontrou com ela? — pergunta, com a boca cheia.

— Com quem? Com a minha mãe?

— Não. Não com a sua mãe...

— Com quem, então?

— Você sabe quem... A pantera, a Farrah Fawcett...

— Ah, só umas duas vezes...

Ela dá outra mordida e joga a barra Mars por cima da mesa, que cai com a parte aberta para baixo.

— E você ainda... gosta dela?

Reconheço um perigo bem real de eu acabar com uma colher de chá espetada no olho. Por isso, escolho as palavras com cuidado antes de responder:

— Acho que sim.

— E o que acha que ela pensa de você?

— Acho que ela me considera... interessante.

Rebecca olha para mim, ensaia dizer alguma coisa, mas olha pela janela e começa a desenhar na condensação do vidro de novo, sorrindo.

— Interessante, é? Bem, é comovente ainda ter esperança, acho. Persistência diante da indiferença. Muito... corajoso — comenta, com um sorriso nos lábios.

— É, bem... Para ser sincero, acredito que não tenho muita escolha no assunto.

— Ah, não! Sempre há uma escolha, Brian. Você sempre pode escolher entre ser ou não um total e completo imbecil.

Quando volto para casa no meio do dia, vejo Marcus saindo e trancando a porta da frente. Fico abaixado atrás de um muro, chego a cogitar sair correndo, mas ainda não tenho o controle completo das pernas, e, além do mais, ele me viu e está esperando no alto da escada, batendo na palma da mão com um rolo de macarrão invisível.

— E aí, Marcus!

— Olá, Brian.

Tento passar por ele para sair da garoa, mas ele não se mexe.

— Desculpe por ontem à noite, Marcus — digo, seu mesquinho ridículo...

— Você sabe que os convidados não podem dormir nas dependências da universidade, certo?

— Sim, eu sei... — respondo, arrancando o Ray-Ban da cara dele...

— Quer dizer... Josh e eu também poderíamos convidar pessoas para dormir, mas não fazemos isso porque respeitamos as regras da universidade...

— Eu sei, Marcus... — concordo, partindo os óculos em duas metades...

— Por quanto tempo ele vai ficar?

— Não sei. Pelos próximos dois dias? Só até ele se organizar um pouco... — e jogo os óculos quebrados no chão e esmago as lentes com o pé...

— Parece que isso pode levar mais de dois dias...

Olho para a janela do meu quarto, preocupado que Spencer ainda possa estar na cama, escutando. Então, proponho em voz baixa:

— Amanhã? Amanhã, ele já vai ter ido embora.

Marcus pesa a situação e acaba achando aceitável.

— Ok, amanhã. Mas só até amanhã — afirma, passando por mim, e eu planto o pé na bunda dele e o empurro escada abaixo para morrer.

— Tenha um bom dia, sim? — recomendo.

Na luz cinzenta do meio-dia, meu quarto está uma bagunça de estrados, capas de discos, casacos, colchões, edredons e toalhas molhadas. Paira no ar um cheiro picante e efervescente de amônia e álcool. Acho que, se eu tivesse entrado fumando, o quarto teria explodido na minha cara. Por isso, abro bem a janela, apesar da chuva, e acendo a luz para ver se Spencer ainda está morgando debaixo do edredom. Não está. Mas há um bilhete na mesa rabiscado num papel A4 pautado: