— Então, como vai esse sorriso?
Rebecca está no pé da escada.
— Ah, oi, Rebecca. O que está fazendo aqui?
— Não estou aqui de penetra. Fui convidada.
— Quem convidou você?
— A adorável Alice, na verdade — responde, pegando sua garrafinha de uísque no bolso do casaco de vinil.
— Sério?
— Uh-hum — dando um bom gole de uísque. — Cá entre nós, acho que ela começou a gostar de mim.
— Mas achei que você não gostasse dela.
— Ah, ela é legal, depois que a gente conhece melhor. — Dá risada e cutuca meu peito com a garrafinha, e percebo que ela está muito bêbada, não bêbada melancólica ou bêbada mal-humorada, mas bêbada levada, bêbada brincalhona, o que é um bom sinal, mas, ainda assim, um pouco estranho e desconfortável, algo como ver Stalin andando de skate. — Por quê? Você acha que estou sendo hipócrita? Acha que eu deveria ir embora, Brian?
— Não, de maneira alguma. É bom ver você. Só pensei que isso não fosse sua praia.
— Ah, bem, você me conhece. Não há nada que eu goste mais do que 200 alunos de teatro bêbados querendo cantar juntos — e aponta com a cabeça para a sala de estar, na qual Ricardo III, o multifacetado Neil sei lá o quê, conseguiu um violão em algum lugar e está começando a tocar The Boxer de Simon e Garfunkel.
A lenga-lenga continua por uns 45 minutos. Já deixou de ser um ruído de fundo. Agora, soa mais como uma espécie de mantra indutor de transe, com as harmonias e tudo o mais, e parece que pode durar vários dias. Rebecca e eu não nos incomodamos muito. Estamos espremidos no sofá do outro lado da sala passando a garrafa de uísque um para o outro e dando risada.
— Ah, não acredito... O merdinha do Neil MacIntyre achou um tamborim...
— De onde ele tirou um tamborim...?
— Do próprio cu, provavelmente... — diz ela, tomando um gole do uísque. — Você acha que algum dia isso vai acabar?
— Acho que, enquanto não começarem a tocar Hey, Jude, a gente está numa boa.
— Se começarem, pego um alicate e desmonto aquele violão de merda. Eu juro!
Agora, a festa está alcançando sua massa crítica. Todos os cômodos estão apinhados, e, ali na sala, as pessoas se agarram aos móveis como em A balsa de Medusa, do pintor realista francês do século XIX Gericault. Deveria sair para pegar mais uma bebida, mas Rebecca e eu estamos num lugar excelente, enfiados entre seis pessoas num sofá de dois lugares, e já deu para perceber que a bebida acabou, pois as pessoas estão trotando pela sala em busca de garrafas e segurando-as contra a luz, ou procurando latas abandonadas sem cinzas de cigarro nas bordas. Também não quero sair do lugar, pois Rebecca está bêbada e muito engraçada, e acho que também está me paquerando um pouco, bafejando seu hálito de uísque no meu ouvido, e isso me ajuda a não pensar na música do Simon e Garfunkel e em Alice e Spencer, que, neste exato momento, devem estar transando extasiados numa pilha de casacos.
— …Sabe, se eu governasse o mundo, o que a propósito tenho toda intenção de fazer um dia, a primeira coisa que faria seria proibir violões... Tudo bem... Não proibir, mas ao menos limitar o acesso, organizar um sistema de licenciamento, igual a ter uma arma de fogo ou uma empilhadeira, e implementaria regras bem draconianas: não pode tocar depois do pôr do sol, nem em praias ou perto de acampamentos com fogueiras, nada de Scarborough Fair, nada de American Pie, nada de harmonias, nunca mais de duas pessoas cantando ao mesmo tempo...
— Mas a legislação não vai servir apenas para eles passarem à clandestinidade?
— É exatamente o que deveriam fazer, meu amigo, exatamente. E proibiria a maconha também. Como se os estudantes já não fossem tolos e obcecados consigo mesmo do jeito que são. É... Com certeza, eu proibiria a maconha.
— Mas já não está proibida? — pergunto.
— É um ótimo argumento, amigo. Protesto deferido! — diz, drenando o resto do uísque da garrafa. — Agora, álcool, álcool e nicotina, são as únicas drogas apropriadas. Tem alguma coisa nessa lata de cerveja perto do seu pé?
— Só bitucas de cigarro...
— Ah, então deixa. — Ela me pega sorrindo. — Qual é a graça?
— Você...
— E o que é engraçado a meu respeito, seu moço?
— Suas opiniões. Você acha que vai relaxar? Com a idade?
— Claro que não! Vou dizer uma coisa, Brian Jackson. Sabe essa merda que falam sobre ser de esquerda até os 30 anos e depois perceber o grande erro e ficar completamente de direita? Bem... É uma grande bobagem... Isso que é. Se ainda formos amigos no ano 2000, que vai ser, o quê? Daqui a 14 anos... E espero que a gente ainda seja amigo, Brian, meu velho amigo... Se ainda formos amigos e eu tiver mudado de alguma maneira, comprometido minhas visões políticas, éticas ou morais em relação a impostos ou imigração ou ao Apartheid, ou aos sindicatos, ou se eu parar de ir a manifestações e a reuniões ou tiver me tornado o mais remotamente de direita, você tem minha permissão para dar um tiro aqui — batendo de leve no centro da testa. — Bem aqui.
— Ok. Eu atiro.
— Faça isso. Pode atirar. — Pisca os olhos devagar, lambe os lábios e tenta beber da garrafa vazia antes de dizer: — Ei, desculpe ter pesado em você hoje de manhã.
— Como assim?
— Você sabe... Ficar toda Sylvia Plath com você.
— Ah, tudo bem...
— Quer dizer... Continuo achando que você é um babaca total e tudo mais, mas sinto muito pelo incômodo.
— E por que eu sou um babaca...?
— Você sabe por quê...
— Não, vá em frente, diga...
Ela sorri para mim de soslaio, sob o peso dos cílios escuros.
— Por não ter dormido comigo quando teve a oportunidade.
— Ah, bem... — E, por um momento, penso em dar um beijo nela, mas tem gente demais olhando, e Alice está lá em cima. Então, eu digo: — Talvez... em outra ocasião?
— Ah, não, você estragou tudo, sinto informar. Foi uma única chance... — diz, empurrando meu ombro com a cabeça. — Uma. Única. Chance... — Ficamos um tempo, sem olhar um para o outro, até Rebecca dizer: — E onde está o seu amigo?
— Spencer? Não faço ideia. Lá em cima, acho.
— Achei que ele estava tendo uma espécie de colapso nervoso ou coisa do tipo...
— É, bem... Alice está ajudando ele a superar isso.
— Então, vou conhecer o seu amigo ou não?
Rebecca e Spencer são uma combinação que eu nunca imaginei, e as consequências podem ser desastrosas, mas preciso saber onde ele está e o que anda fazendo, e se já está com a mão dentro da blusa de Alice. Por isso, respondo:
— Se você quiser... — E nos içamos das profundezas do sofá e começamos a olhar em volta.
Verificamos todas as dependências, até encontramos os dois num pequeno quarto lotado no último andar da casa, num canto, a uns 5cm um do outro. Pessoas dançam ao redor, ou não dançam, porque não há espaço, mas balançam as cabeças ao som de Exodus de Bob Marley, e Alice balança os ombros, um pouco fora do ritmo, mordendo o lábio inferior, e OK, eles não estão se beijando, por assim dizer, só conversando, mas podiam perfeitamente estar se beijando, pela proximidade um do outro. Spencer está com aquela expressão irritante de garoto charmoso, como se fosse personagem de seriado de TV ou coisa assim. E Alice parece deslumbrada, um olhar fascinado e interessado, os braços cruzados em cima da malha como se estivesse fazendo um teste para o papel de meretriz do interior, empurrando o decote para a frente, no caso de ele não ter reparado.