— É ele, ali no canto — indico.
— O de cabeça raspada?
— Ele não é fascista — esclareço, mesmo sem saber por que o estou defendendo, talvez ele seja fascista, ou algo tão ruim quanto.
— Bonito ele, não?
— Ah, certo, sim, certo, obrigado, Rebecca.
— Ora, não seja ridículo. Você não tem nada com o que se preocupar nesse quesito.
Será que ela está sendo sarcástica? Não sei dizer, não consigo me concentrar, pois, naquele momento, Alice está passando a mão na cabeça de Spencer e dando risadinhas, afastando a mão num gesto patético de menininha dizendo oooh, ficou parecendo uma escovinha, e Spencer pega a mão dela e põe de volta na cabeça, dando seu estúpido sorriso de personagem de TV e dizendo não, vá em frente. Aí, ele vai mostrar as cicatrizes daquela briga com vidro. Que grande golpe raspar a cabeça para fazer os amigos pensarem que você está em crise ou em surto, quando, na verdade, é só um truque barato para fazer garotas bonitas alisarem a sua careca. Chego a me perguntar quanto tempo levaria para descer as escadas, encher uma bacia com água fria, voltar e jogar em cima deles. Graças a Deus, Patrick Watts vai até lá e faz isso por mim, começando uma conversa!
— …Ei, você está me escutando, seu maluco? — pergunta Rebecca.
— Uh-hum.
— Então, você vai me apresentar ao seu amigo ou não?
— É claro, vamos lá. Mas não vai dar em cima dele, tá?
— Ah, e por que você ligaria pra isso? — responde ela, e nós vamos até lá.
— …E Patrick é o capitão do nosso time! — Alice está anunciando com orgulho, quando chegamos.
— É, eu já ouvi dizer... — comenta Spencer, sem olhar para Patrick.
— Oi, Rebecca! — diz Alice, e, bizarramente, a envolve com os braços. Rebecca retribui o abraço, mas faz uma careta para mim por cima do ombro dela.
— Spencer, essa é a minha grande amiga Rebecca — grito por cima da música alta, e os dois se apertam as mãos.
— O famoso Spencer. Prazer em conhecê-lo, afinal — diz Rebecca. — Brian me falou muito a seu respeito.
— Ah, sim! — diz Spencer, e há uma pequena pausa enquanto nós cinco ficamos parados, balançando um pouco a cabeça, e, então, do nada me vejo gritando...
— Ei, você devia falar com a Rebecca sobre seu PROBLEMA LEGAL, Spencer!
Não sei bem por que eu digo isso, mas digo. Na verdade, acho que estou tentando ser prestativo e amigável, continuar a conversa, mas, depois de uma pequena pausa, ainda sorrindo, Spencer pergunta:
— Por quê?
— Porque ela é advogada.
— Eu estou cursando direito. Não é a mesma coisa...
— Não, mas ainda assim...
— E qual é o seu problema legal? — pergunta Patrick, interessado.
— Spencer está sendo acusado de burlar o seguro-desemprego... — explico.
— Você está brincando... — contesta Alice, toda íntegra e esquerdista de repente, apertando de leve o braço de Spencer — … Aqueles canalhas. Coitado...
— Mandou bem, Brian — Spencer gesticula com os lábios, sorrindo, mas não de verdade.
— Bom, se você não fez isso, não vai haver problema — diz Patrick, arrogante.
— Mas ele fez — continuo, só para esclarecer as coisas.
— Então, você tem um emprego? — pergunta Patrick.
— É um emprego irregular, pago em dinheiro. Num posto de gasolina... — murmura Spencer.
— Só que ele foi pego... — mas os olhos de Spencer me lançam dardos e eu paro de falar.
— Bem, nesse caso... — Patrick ri, dissimulado, dando de ombros — ...Só posso desejar boa sorte, cara.
Spencer está com o olhar fixo em mim, e Rebecca começa a discutir com Patrick:
— Não é fácil arranjar emprego.
— Bem, mas é possível arranjar trabalho...
— Não, não é...
— Acho que você vai ver que é...
— Existem quatro milhões de desempregados! — diz Rebecca, começando a ficar irritada.
— São três milhões. E não é o caso, é? Esse é o ponto. Se ele estava trabalhando irregularmente, era porque poderia arrumar um emprego, mas parece que o salário não atendia ao seu estilo de vida. Por isso, decidiu pegar dinheiro do Estado — será que Patrick vai continuar chamando Spencer de ele?, penso — , e você não pode culpar o Estado por querer algo em troca ao descobrir que foi roubado. É o meu dinheiro, afinal...
Bob Marley está cantando No Woman, No Cry, e vejo Spencer engolir sua cerveja, fuzilando Patrick todo o tempo, com os olhos semicerrados. Nossos olhares se cruzam por apenas um segundo e logo volto a olhar para Rebecca, que está cutucando o peito de Patrick com o dedo numa tentativa de arrancar seu coração ainda batendo.
— Não é o seu dinheiro. Você não paga impostos! — diz ela.
— Não, mas vamos pagar, todos vamos, e muito. E pode me chamar de antiquado, mas acho que tenho o direito de exigir que esse dinheiro não vá para pessoas desempregadas que, na verdade, não estão desempregadas...
— …Mesmo se o emprego pagar menos do que a linha da pobreza?
— Não é problema meu! Se o empregado quer um emprego melhor, há muito que pode fazer a respeito. Pode entrar para o Programa de Oportunidades para Jovens, pode se aperfeiçoar, pegar a bicicleta e ir atrás de...
— As próximas palavras ditas por Patrick são:
— POR FAVOR, TIREM ESSE CARA DE CIMA DE MIM POR FAVOR! — Spencer deu um passo adiante e, do nada, passou o braço com força por baixo do queixo de Patrick, segurando-o alto, bem alto contra a parede, e, mesmo já tendo visto Spencer se meter em brigas umas sete ou oito vezes antes, isso ainda me pega de surpresa, como de repente descobrir que ele sabe sapatear. A coisa toda acontece tão depressa e com tanta destreza que, por um momento, ninguém fora do nosso círculo chega a perceber. Todos continuam se balançando ao som de No Woman, No Cry. Mas Patrick começa a dar chutes, fazendo marcas na parede de gesso, e Spencer é forçado a firmar o corpo contra o de Patrick, enfiando a mão livre na cara de Patrick e apertando sua boca até fechar.
— Pare com isso, cara, pelo amor de Deus... — intervenho.
— Tá... Então, pergunta número um, quem é ele? — sibila Spencer, o rosto a centímetros de distância do de Patrick.
— Como assim? — gagueja Patrick.
— Bem, você fica falando sobre ele. Ele quem?
— Você, claro...
— Larga ele, Spencer — insisto.
— E qual é o meu nome?
— O quê?
— Vamos lá, por favor, pare com isso...
— Meu nome, qual é o meu nome, seu riquinho idiota...? — questiona Spencer, apertando as bochechas de Patrick para dar ênfase, empurrando sua cabeça com força contra a parede. O disco para de tocar com um arranhão, e as pessoas começam a se virar para assistir. A cara de Patrick está de um vermelho intenso agora, os dentes cerrados, os dedos do pé procurando o chão, e ele balbucia cuspindo saliva e suco de laranja: — Eu... não... me lembro...
— Parem com isso, vocês dois! — grita alguém da porta, onde uma multidão começou a se formar.
— Vamos chamar a polícia — grita mais alguém.
Spencer permanece indiferente e o escuto dizer num sussurro, a testa tocando a de Patrick:
— Bem, a resposta certa é Spencer, Patrick, e, se você quiser me aconselhar com relação à minha carreira, tenha algum respeito e diga na minha cara, seu almofadinha...