Por isso, admito que não dei ao pessoal do Departamento de Acomodações muito com que se preocupar, mas nem isso explica a razão de terem me mandado para essa casa com Josh e Marcus.
Richmond House fica em um platô de tijolos vermelhos no topo de uma colina bem íngreme acima da cidade, muito bem localizada, a quilômetros da parada de ônibus mais próxima. Por isso, quando afinal consigo chegar lá, minha jaqueta está toda suada. A porta da frente está aberta e o corredor está abarrotado de caixas e bicicletas de corrida, dois remos, um bastão de críquete e enchimentos, equipamento de esqui, tanques de oxigênio e um traje de mergulho. Parece fruto de um assalto a uma loja de artigos esportivos. Largo minha mala perto da porta e, com uma crescente ansiedade, escalo as pilhas de material esportivo em busca dos meus novos colegas de quarto.
A cozinha é funcional, iluminada com luz fluorescente e cheira a água sanitária com levedo. Ao lado da pia, dois garotos, um louro enorme e um moreno atarracado, espinhento, com cara de rato, estão enchendo uma lata de lixo de plástico de água com uma mangueirinha. O som está muito alto, tocando She Sells Sanctuary do The Cult e eu fico um tempo na porta dizendo Oi! e Vocês aí!, até o cara louro afinal se virar e me ver com os sacos de lixo.
— Oi! É o lixeiro!
Ele abaixa um pouco o som, curva-se como um labrador amigável e me dá um vigoroso aperto de mão, e percebo que é a primeira vez que aperto a mão de alguém da minha idade.
— Você deve ser o Brian — diz. — Eu sou Josh e esse é o Marcus!
Marcus é pequeno e cheio de espinhas, com as feições concentradas no meio do rosto atrás de óculos de aviador que aumentam ainda mais a impressão de que ele jamais conseguiria pilotar um avião. Ele me olha de cima a baixo com sua cara de rato, funga e volta a atenção para a lixeira de plástico. Mas Josh continua falando, sem esperar resposta, numa voz que parece saída de um cinejornal da Pathé News.
— Como você chegou? Transporte público? Onde estão os seus pais? Está se sentindo bem? Você está completamente encharcado de suor.
Josh usa uma bota de cano curto vinho, colete de veludo bege — isso é que é um colete de veludo —, camisa afofada roxa e um jeans preto tão justo que dá para ver a posição de cada testículo. O corte do cabelo é igual ao de Tone, o Viking Afeminado, o distintivo dos metaleiros de carteirinha, mas aqui complementado por um pretenso bigode felpudo; um visual meio de fidalgo afetado que chega a dar a impressão de que ele esqueceu o florete.
— O que tem aí na lixeira? — pergunto.
— Cerveja caseira. A gente achou que era melhor começar a fermentação logo. Claro que você pode participar se quiser. A gente divide o custo por três...
— Certo...
— São 10 paus para entrar, pela levedura e o concentrado de lúpulo, os tubos, o barril e todo o resto, mas, daqui a três semanas, você vai estar curtindo a tradicional cerveja amarga de Yorkshire por apenas 6 pence a caneca!
— Que pechincha!
— Marcus e eu somos bons cervejeiros. Tocávamos uma destilaria ilegal nos alojamentos e até tivemos um bom lucro, para falar a verdade. Apesar de termos cegado acidentalmente uns garotos do turno integral!
— Vocês estudaram na mesma escola?
— Isso mesmo. Somos inseparáveis, não é, Marcus? — Marcus funga. — Em que escola você estudou?
— Ah, você nunca deve ter ouvido falar...
— Tenta.
— Langley Street?
Nada.
— Langley Street Comprehensive?
Nada.
— Southend? — sugiro. — Essex?
— Nada! Você estava certo, nunca ouvi falar! Quer que eu mostre o seu quarto?
Sigo Josh até o andar de cima, com Marcus morrinhando atrás, por um corredor cinza decorado com instruções sobre como proceder em caso de incêndio. Passamos pelos quartos deles, cheios de caixas e malas, porém ainda espaçosos, e, no fim do corredor, Josh abre uma porta que, à primeira vista, parece de uma cela de prisão.
— Ta-dãã! Espero que não se incomode, mas escolhemos os quartos antes de você chegar.
— Ah... Certo...
— Disputamos no cara ou coroa. A gente queria começar a desempacotar, a nos acomodarmos, sabe.
— É claro! Certo! — Sinto que estão me passando a perna e decido nunca mais confiar em gente com colete de veludo. O truque agora é me afirmar sem parecer muito assertivo.
— Meio pequeno, não é? — comento.
— Todos são pequenos, Brian. E jogamos no cara ou coroa, de maneira limpa e justa.
— Como se joga cara ou coroa com três pessoas?
Silêncio. Josh franze a testa, mexendo a boca sem falar nada.
— Podemos jogar a moeda de novo, se você não confia na gente — Marcus funga, indignado.
— Não, não é isso, é que...
— Bem, então vamos deixar você se organizar. É um prazer tê-lo a bordo! — E os dois voltam cochichando para a cerveja caseira.
Parece que a minha cova já foi cavada. O quarto tem a atmosfera e o apelo da cena de um crime. Um solitário colchão sobre um estrado de metal, um conjugado de guarda-roupa e mesa de madeira compensada e duas pequenas prateleiras de fórmica que imitam madeira. O carpete é marrom-lama e parece ter sido tecido com pelos pubianos compactados. Uma janela suja em frente à mesa dá vista para as latas de lixo no andar de baixo, e um aviso emoldurado adverte que o uso de cola na parede é passível de pena de morte. Bem, eu queria um sótão, e ganhei um sótão. Melhor começar a arrumar, imagino.
A primeira coisa que faço é instalar o som e tocar Never for Ever, o triunfal terceiro álbum de Kate Bush. O resto das fitas são empilhadas ao lado do toca-discos, e acontece um pequeno debate interno sobre qual álbum deve ficar virado para o quarto; tento Revolver, dos Beatles, Blue, de Joni Mitchell, Diana Ross and the Supremes e Ella Fitzgerald antes de escolher o Concertos de Brandenburgo, de Bach, novinho, da gravadora Music For Pleasure, uma pechincha de 2,49 libras.
Depois, desempacoto os livros e tento diferentes formas de organizar nas prateleiras de fórmica: ordem alfabética por autor, alfabética por autor com subdivisões por assunto, gênero, nacionalidade, tamanho e, afinal, do modo mais eficiente, pela cor — pretos clássicos da Penguin numa ponta e um dégradé de cores até os brancos da Picador na outra, com 5 centímetros de verdes da Viragos que ainda não li, mas que, com certeza, vou ler, no centro do espectro. É óbvio que isso leva tempo, e, quando termino, já está escuro e instalo uma luminária na mesa.
Em seguida, decido transformar minha cama num futon. Na verdade, é uma coisa que já quero fazer há algum tempo, mas minha mãe ria de mim quando eu tentava isso em casa, então vou tentar aqui. Agarro com determinação o colchão, que, misteriosamente, está tão úmido e manchado que dá até para plantar agrião nele, jogo-o no chão sem encostar no meu rosto, e, com alguma dificuldade, levanto o estrado de metal. Pesa uma tonelada, mas consigo escondê-lo atrás do armário. Claro que com isso perco alguns centímetros de espaço valioso no chão, mas o efeito final vale a pena. É uma atmosfera meio minimalista, contemplativa e oriental, só que um pouco sabotada pelas grossas listras azul-marinho, vermelhas e brancas do edredom da British Home Stores.