— Aonde você está indo? — Spencer grita atrás de mim.
— Não sei!
— Você está fugindo, Brian? É isso?
— É... Que seja!
— E como é que vou conseguir voltar?
— Sei lá, Spencer. Não é problema meu, é?
Escuto ele dizer bem baixo, quase que para si mesmo:
— Vá em frente, então. Pode ir embora.
Paro e olho para trás esperando ver Spencer sorrindo ou debochando, mas ele está quieto, parado, um pouco distante, debaixo da luz de um poste, a cabeça pendendo para trás, os olhos fechados e a mão pressionada contra a testa, os dedos encolhidos.
Parece um garoto de 10 anos de idade. Sinto que deveria ir até ele, ou, ao menos, me aproximar um pouco mais, mas, em vez disso, eu grito do meio da rua:
— Você precisa ir embora, Spencer! Até amanhã de manhã. Você não pode mais ficar na casa. É contra as regras.
Ele abre os olhos, úmidos, vermelhos e cansados, e me lança um olhar impassível.
— E é por isso que você quer que eu vá, Brian? Porque é contra as regras?
— É. Em parte, sim.
— Tudo bem... Então, eu vou.
— Ok.
— Sinto muito, se eu... envergonhei você. Na frente dos seus amigos.
— Você não me envergonhou. Eu só... não quero você por perto. Só isso.
Dou as costas e me afasto depressa, sem olhar para trás, com a certeza de que deveria me sentir bem e desafiador, e forte, por afinal ter enfrentado Spencer pelo menos uma vez, mas por alguma razão não sinto nada disso. Só me sinto febril, vazio, estúpido e triste, e não faço a menor ideia de onde poderia ir.
Não sei bem quanto tempo continuo andando depois disso. Estou vagamente ciente de que tenho as únicas chaves da casa, de que a coisa sensata a fazer seria voltar e deixar Spencer entrar. Mas ele pode acordar Marcus ou Josh e pedir para entrar, e, afinal, não sou babá dele. Vou dar tempo suficiente para ele chegar em casa e dormir, fazer uma hora andando até a bebedeira e a confusão passarem, entrar em casa de fininho e resolver as coisas de manhã. Porém, depois de mais ou menos uma hora, a garoa engrossa e vai se transformando em chuva, e, embora não sendo minha intenção, pelo menos não minha intenção consciente, de repente estou na porta do alojamento de Alice e Rebecca.
Os portões da frente são fechados à 1h da manhã para quem não tiver uma chave; então, escalo o velho gradil de ferro. Consigo fazer isso sem disparar nenhum alarme nem me empalar, mas a sola lisa dos meus sapatos escoceses escorrega, e desço como num tobogã até o chão enlameado e cheio de plantas, parando embaixo de um arbusto redondo. Limpo a lama grossa das mãos num chumaço de folhas molhadas e me agacho sob os arbustos, esperando alguém passar pelo caminho de cascalho até a entrada principal.
A água gelada pinga das folhas e goteja na base do meu pescoço. Uma camada grossa de lama úmida começa a ensopar meus sapatos de camurça, e tenho a sensação de que meus pés estão embrulhados num papelão frio e úmido. Estou prestes a desistir e voltar para casa quando, enfim, vejo algumas pessoas chegando pela rua. Saio de trás dos arbustos e ando um pouco atrás delas, e, quando abrem a porta, eu grito esperem, e elas param e se viram.
— Segurem a porta! — Um homem que não reconheço olha para mim com desconfiança. — Esqueci minha chave! Dá pra acreditar? E numa noite como essa! — Ele está olhando os meus sapatos e minha calça, decorados com folhas e fungos. — Tomei um tombo! Puxa, eu estou ensopado! — mas ele não se mexe, então fuço minha carteira com os dedos sujos e dormentes e mostro meu cartão de estudante.
— Olha... Eu sou aluno — e isso parece convencê-lo, pois ele abre a porta e me deixa entrar.
Ando encharcado pelos corredores escuros, deixando um rastro de sujeira no assoalho de madeira até chegar ao quarto de Alice. Vejo uma pequena faixa de
luz laranja debaixo da porta. Por isso, sei que ela está acordada. Encosto o ouvido na porta e consigo ouvir uma música — Joni Mitchell cantando Help Me, do LP Court and Spark — e quase consigo sentir o calor e a luz pela porta de madeira, e quero desesperadamente estar do outro lado. Bato com delicadeza, delicadeza demais, pelo visto, pois ela não escuta. Então, bato de novo e sussurro seu nome.
— Quem é?
— É o Brian — respondo.
— Brian? — ela abre a porta. — Ah, meu Deus, Brian! Olha só o estado em que você está! — e pega minha mão e me puxa para dentro.
Alice me conduz para o centro do quarto e logo toma o controle da situação, adotando a conduta de uma rigorosa, mas gentil, governante eduardiana:
— Não se sente e não toque em nada até se secar, mocinho! — Começa a remexer nas gavetas até tirar um suéter verde largo feito à mão, umas calças largas de ginástica e um par de meias grossas. — Aqui, você vai também precisar disso — diz, desfazendo o cordão do roupão branco e jogando-o para mim. Por baixo, ela está usando uma camiseta cinzenta, velha e curta acabando acima do umbigo, com uma imagem do Snoopy deitado em cima de sua casinha esfarelada e desbotada como um afresco medieval, calcinha cinza e um par de meias masculinas pretas enroladas até o tornozelo, e me ocorre que é a visão mais erótica que já tive na minha vida, sem sombra de dúvida.
— Olhe só como você está... Suas mãos estão tremendo...
— É mesmo? — pergunto, e, quando abro a boca, percebo que meus dentes estão trincando.
— Vamos! Tire essa roupa antes de pegar uma pneumonia — ordena, com a mão esticada.
Estou um pouco nervoso com relação a me despir, em parte porque os halteres ainda não tiveram chance de fazer efeito, e também porque estou usando um dos coletes da minha antiga escola, o que me deixa fadado a ficar parecendo um pouco com um órfão de guerra. Mas lembro que minha cueca está em condições relativamente boas, e que estou congelando, e acabo cedendo. Alice fica ao meu lado quando começo a me despir e nota que minhas mãos estão tremendo demais para desabotoar a camisa.
— Ei, deixe eu fazer isso — diz, e começa a me desabotoar de cima para baixo. — Por que você não está com Spencer?
— Nós meio que briga-ga-gamos.
— E onde ele está? — Por que ela ainda está falando do Spencer?
— Não faço ideia, deve ter voltado para a minha casa. — Os botões estão livres e ela se afasta para eu tirar a camisa. — Sinto muito por tudo o que aconteceu...
— O quê?
— Você sabe... O Spencer, a briga...
— Ah, não se preocupe com isso. Na verdade, até que eu gostei. Quer dizer, nunca aprovei violência física, mas, no caso do Patrick, até faço uma exceção. Nossa! O seu amigo Spencer é bom de briga, né? — os olhos brilham com a lembrança. — Sei que não deveria dizer isso, mas acho que há algo excitante em homens lutando, a gente se sente atraída, sabe, como nos combates de gladiadores na Roma Antiga. — Estou sentado na beira da mesa, tentando não sujar tudo de lama, desamarrando os cadarços do sapato imundo.
— Uma vez saí um tempo com um cara que era boxeador amador, e eu adorava assistir aos treinos e às lutas. Sempre fazíamos um sexo incrível e animal depois, com todo aquele sangue e os hematomas e tudo o mais, e havia algo de muito bonito e sensual na coisa toda. O sangue no travesseiro depois...
E ela fica parada um momento, com meus sapatos cheios de musgo na mão, um pequeno involuntário tremor erótico com a lembrança. Começo a tirar a calça molhada com cuidado.
— Claro que não tínhamos nada em comum além da cama e do ringue. Por isso, a relação estava condenada desde o princípio. Não é uma boa base para uma relação, é? Quando a gente só se sente atraída quando eles estão seminus ou socando alguém... Você já bateu em alguém, Brian?