— Bem, obrigado por me abrigar — digo, tentando ser um pouco insolente, mas sem sucesso, e me abaixando para lhe dar um beijo. Ela se afasta um pouco rápido demais, e, por um momento, me pergunto se deveria me sentir ofendido, porém ela logo dá uma explicação perfeitamente racionaclass="underline"
— Desculpe, mau hálito!
— De maneira alguma — garanto, apesar de o hálito dela estar mesmo muito, muito ruim. Mas não me incomodo. Ela podia estar soltando fogo pela boca que eu não iria me importar.
— Você podia estar soltando fogo pela boca que eu não iria me importar.
Ela emite um som hummm de ceticismo e revira os olhos de um modo encantador.
— Acho melhor ir antes que alguém veja você. E você... Brian...
— Sim?
— Não é pra contar para ninguém... Promete?
— Claro!
— Nosso segredo...?
— Com certeza.
— Completamente?
— Prometo.
— OK. Pronto? — Ela abre a porta e espia o corredor para conferir se a barra estava limpa, depois me dá um empurrãozinho carinhoso, como se fosse um paraquedista que não quer saltar do avião, e me viro bem a tempo de ver seu lindo rosto desaparecendo atrás da porta, sorrindo, tenho certeza.
Sento-me no aquecedor do corredor e bato meus sapatos arruinados um no outro, jogando lama por todo o piso.
Flutuo até chegar em casa. Não como nada além de batatinhas e amendoim nas últimas 24 horas e estou morto de fome, e consegui estirar um músculo do pescoço enquanto beijava Alice, o que devia ser uma coisa boa. Também estou com aquela sensação de tontura, vazio e embriaguez que a gente sente quando fica acordado a noite toda, basicamente funcionando à base de adrenalina, triunfo e saliva de outra pessoa. Paro na lanchonete e pego uma lata de Fanta, uma barrinha de Mars e uma caixa de balas de menta para o café da manhã e começo a me sentir melhor.
Era uma bela e fria manhã de inverno, e uma multidão de crianças segurava a mão dos pais a caminho da escola. Parado, comendo minhas balas no cruzamento de pedestres, vejo uma garotinha ao meu lado me olhando com curiosidade, observando meus sapatos e a calça, ainda cobertos de lama, como se eu tivesse mergulhado em leite com chocolate. Imagino que isso devia lembrar a gravura de algum livro infantil. Então, sorrio para a garotinha, me abaixei e digo numa voz bem J. D. Salinger:
— Eu dei um mergulho em leite com chocolate!
Mas alguma coisa acontece com as palavras entre meu cérebro e a boca, e, de repente, isso soa como a coisa mais estranha e assustadora que alguém já falou a uma criança. A mãe dela também parece ter essa impressão, pois me olha com uma carranca como se eu fosse O Sequestrador de Crianças, pega a filha e atravessa a rua antes mesmo de o sinal abrir. Deixo para lá, pois decidi que nada estragaria essa manhã. Quero manter aquela sensação de júbilo inebriado pelo maior tempo possível, mas há alguma coisa me incomodando, uma coisa da qual não consigo me livrar.
Spencer. O que dizer a Spencer? Pedir desculpas, talvez. Mas nada muito solene, não faria nenhum estardalhaço, só meio que dizer ei, desculpe por ontem à noite, acho que as coisas saíram um pouco do controle, cara, e daí vamos rir e esquecer. E contaria como Alice e eu fizemos amor, exceto que não usaria esse termo, diria que transamos e as coisas voltariam ao normal. Claro que seria melhor se ele fosse embora ainda aquele dia, mas vou fazer um esforço, matar umas aulas, acertar as coisas e vou com ele até a estação do trem.
Mas, quando cheguei a Richmond House, ele não estava lá. O quarto está exatamente como o deixamos na tarde anterior — o estrado da cama, a bagunça de cobertores e toalhas frias e úmidas, o cheiro de amônia da cerveja caseira e do gás. Cheguei a me perguntar se teria deixado alguma coisa ali, mas aí me lembrei de que ele não tinha trazido nada. Só uma sacola plástica com um Daily Mirror de três dias atrás e um pastelão de carne rançoso, que ainda estava ao lado da minha mesa, onde ele deixou. Angustiado, peguei a sacola plástica e fui em direção à cozinha, na qual Josh e Marcus estavam comendo ovos poché e verificando a cotação das suas ações no The Times.
— Algum de vocês viu o Spencer ontem à noite?
— Não, não vi — respondeu Josh.
— Ele não estava com você? — resmungou Marcus.
— Não, nós nos separamos na festa. Achei que ele fosse voltar sozinho.
— Por quê? E onde você esteve, então, seu andarilho encardido? — perguntou Josh, com malícia.
— Passei a noite no alojamento de uma amiga. Minha amiga Alice — expliquei, antes de me lembrar de que não era para contar a ninguém.
— Queeeeeeeeeeeem? — os dois perguntaram, em uníssono
— Bom, sabem como. É tudo uma questão de ter charme! — esclareci.
Coloquei as coisas do Spencer na lixeira e saí. Eu não tenho charme, claro, nunca tive charme, nunca vou ter charme, nem sei bem o que é charme, mas não há razão para não deixar as pessoas achando que tenho charme, mesmo que seja só por um tempinho.
Quarta Rodada
Rosemary levantou, inclinou-se e disse a ele a coisa mais sincera:
— Ah, nós somos grandes atores: eu e você.
33
PERGUNTA: Em um artigo de 1926, publicado pela revista Lef do poeta Maiakóvsky, Sergei Eisenstein propõe um novo tipo de cinema baseado menos no desdobramento estático, lógico e linear das ações, e mais numa justaposição estilizada de imagens. Qual é o nome desse novo estilo cinematográfico de Eisenstein?
RESPOSTA: Montagem de atrações.
Existe convenção genérica, bastante reconhecível numa corrente de filmes americanos, na qual o herói e a heroína se apaixonam um pelo outro durante uma sequência prolongada de montagens sem falas, invariavelmente enfatizada por uma esplendorosa balada orquestrada, em geral com um solo de sax. Não entendo bem por que se apaixonar tem de ser uma coisa sem palavras, talvez porque dividir os pensamentos, segredos e desejos mais íntimos seja meio desgastante para quem não está diretamente envolvido. Mas, de qualquer modo, essa sequência ilustra todas as coisas divertidas que jovens casais devem fazer, como comer pipoca no cinema, andar de cavalinho nas costas um do outro, trocar beijos no banco de um parque, experimentar chapéus engraçados, beber taças de vinho numa banheira com vapor, cair em piscinas, andar para casa de braços dados à noite apontando as diferentes constelações etc.
Bem, na semana que passou, não aconteceu nada disso comigo e com Alice. Na verdade, nem cheguei a saber dela, mas está tudo bem, pois meu lema é Distante e descolado e estou tomando muito cuidado para não infringir sua preciosa independência, ainda mais porque ela anda tão ocupada com Hedda Gabler. E não me importo mesmo de não saber dela. Na verdade, só telefonei para Alice o quê? Umas cinco ou seis vezes a semana toda, mas não deixei nenhuma mensagem. Então, o legal é que Alice não sabe que liguei para ela! Admito que houve um momento meio perigoso quando Rebecca Epstein atendeu ao telefone e tive de mudar a voz no meio da ligação, mas acho que me saí bem.
Por enquanto, tenho me distraído ouvindo a obra do meio de carreira de Kate Bush e despejando todos os meus sentimentos num poema de amor em que venho trabalhando para o Dia dos Namorados, dali a três dias, apenas um antes do Desafio. Claro que sei que o Dia dos Namorados não é nada mais que uma exploração cínica de marketing, mas houve uma época em que o Dia dos Namorados foi algo importante para mim, com essa coisa toda de enviar grandes cartas pelo correio. Agora, estou bem mais velho e com mais discernimento emocional. Por isso, é só um cartão para minha mãe e outro para Alice e paro por aí. A coisa Distante e descolada a fazer com Alice seria, é claro, não mandar cartão nenhum, mas não queria que ela pensasse que não estava mais a fim dela, ou, pior, que o que aconteceu entre nós foi só sexo.