Quanto ao poema, estava indo bem, mas me senti incapaz de decidir a respeito da forma apropriada de verso, e experimentei algo como uns sonetos de Petrarca, uns sonetos elisabetanos, uns dísticos com rima, alexandrinos, haicais e versos brancos, e talvez acabe escrevendo um poema humorístico de cinco versos.
Alice/Palácio/Cálice/Falo/Malícia...
Enfim, parece que o nariz de Patrick não está quebrado. Não que não esteja vermelho, inchado ou deformado, mas, sem dúvida, tirou aquele algo a mais da beleza do homem por um tempo. Há também uma cicatriz na bochecha, bem apropriada, que, para mim, parece maneira, coisa de cara durão, porém não digo isso a ele.
— Isso dói? — pergunto.
— O que você acha? — responde ele, carrancudo.
— Um pouco...
— Bom, dói. Dói pra cacete, para dizer a verdade — e, para provar o que está dizendo, ele encosta no machucado e se contrai dramaticamente. Estávamos na sua cozinha, organizada ao estilo militar, fazendo chá antes que o resto da equipe chegue para nosso último ensaio antes da aparição na televisão. — Você percebe que ainda vou estar assim semana que vem? Quando estivermos na televisão? Na frente de milhões de pessoas?
— Não tantos milhões assim, Patrick. De qualquer modo, com certeza eles vão conseguir disfarçar, com maquiagem ou coisa do tipo.
— Bom, espero que sim, Brian, porque a minha família inteira vai estar naquele estúdio, e não quero ter de explicar que um skinhead suburbano agressivo fez isso só porque não concordava com as minhas opiniões políticas.
— Mas esse não foi o único motivo, foi?
— O motivo foi ele ser um animal selvagem que nunca deveria ter sido solto da coleira. Ele tem é muita sorte de eu resolver não abrir um processo.
— Não adiantaria. Ele não tem grana nenhuma.
— Não me surpreende. Não me surpreende que ele não consiga arrumar um emprego decente...
— Na verdade, ele é muito inteli...
— …se comportando desse jeito, não.
— Bem, você estava sendo um pouco...
— Um pouco o quê?
Penso numa resposta — esnobe, ignorante, ofensivo, rude, condescendente —, no entanto decido não falar nada, pois, afinal, meu melhor amigo deu mesmo uma surra nele. Por isso, prefiro mudar de assunto.
— De qualquer maneira, trouxe isso para você, uma oferta de paz, para pedir desculpas em nome do Spencer... — e entrego o presente, um tablete imenso de chocolate Cadbury com frutas e nozes que sobrou dos presentes de Natal da vovó Jackson. Isso me faz sentir meio sem princípios, porque é claro que Spencer nunca, jamais sonharia em pedir desculpas e, por um momento, cogito bater o tablete de chocolate de frutas e nozes com força naquele arrogante nariz de direita de Patrick, imaginando o barulho que faria, aquele estalo alto e prazeroso, mas me limito a entregar o chocolate em suas mãos, pois, afinal, somos uma equipe. Patrick murmura um curto e grosso muito obrigado e guarda o chocolate na prateleira mais alta do armário da parede, para não ter que dividir com ninguém.
A campainha toca.
— Brian, se for a Lucy, você tem que pedir desculpas. Acho que ela ficou um pouco abalada com a coisa toda, pra ser sincero. — Corro para o andar de baixo e abro a porta para Lucy e seu panda.
— Olá, Brian! — cumprimenta ela, animada.
— Lucy, eu queria dizer que sinto muito, muito mesmo pela briga no outro dia...
— Ah, está tudo bem. Eu ia ligar para você naquela semana para ver se...
ALICE! Alice aparece atrás de Lucy.
— E aí, Alice!?
— Oi, Brian — responde ela, com um sorriso imperceptível, pois, no fim das contas, nós temos um segredo.
O resto da reunião se passa de maneira tranquila. Não há notícias de quem serão nossos competidores, porque gostam de manter o segredo até o dia anterior à gravação, porém Patrick pede para não desistirmos se for a Oxbridge ou a Open University, que, segundo ele, são superestimadas. Depois, há um bando de questões práticas, como o aluguel do micro-ônibus da equipe de hóquei e os cartazes que precisam ser afixados no Grêmio Estudantil para a divulgação do evento para qualquer um que queira ir conosco dar apoio. Um dos amigos grandalhões de direita do Patrick, do instituto de economia, ofereceu-se para dirigir o micro-ônibus dos torcedores até Manchester, desde que houvesse um número suficiente de interessados.
— Então, se houver alguém que você queira que vá conosco, peça para preencher o formulário no Grêmio.
Alice ficou de convidar o elenco de Hedda Gabler, e Lucy tinha uns amigos da medicina, mas a única pessoa que consegui pensar em chamar foi Rebecca. Nem sei se ela acabaria nos vaiando ou torcendo para a outra equipe, mas resolvi, pelo menos, dar a escolha.
— Agora... — continuou Patrick, consultando suas anotações impressas — …o último item na agenda. Precisamos escolher uma mascote para o time!
Não tenho nada que pudesse ser considerado como mascote, e Patrick não tem nada remotamente macio ou divertido. Então, ficamos entre Eddie, o velho ursinho de Alice, e a caveira do esqueleto de anatomia de Lucy, que, muito espirituosamente, Alice sugere que seja enrolado num cachecol e batizado de Yorick.
Ficamos com o Eddie.
Depois de terminarmos, tenho de correr rua abaixo para alcançar Alice, que precisava ir direto para os ensaios.
— Então, o que você vai fazer aman...
— Ensaio...
— Mas e durante o dia?
— Preciso entregar uma redação...
— Que tal um cinema?
— Cinema? — Ela para no meio da rua, olha dos dois lados para ver se alguém estava nos observando e responde: — OK. Cinema.
Combinamos os detalhes e vou para casa num salto, com a intenção de mandar ver naquele poema.
Na tarde seguinte, ela deixa de fazer a redação para ficar comigo, e vamos ao cinema juntos. Cinema não é o ideal, claro, pois as oportunidades para conversar, ou mesmo só para olhar para ela, são limitadas. Além disso, Alice quer ver De volta para o futuro, no Odeon, insistindo que vai ser engraçado, meio divertido, mas eu tenho em mente algo mais intelectual. Então, em vez de ir ao Odeon vamos à matinê dupla das terças-feiras de filmes mudos no Art Cinema. A surpreendente obra-prima surrealista de 1928 de Dalí e Buñuel, Um cão andaluz, e o magistral e polêmico filme soviético O encouraçado Potemkin, de Eisenstein.
Compramos um monte de doces no jornaleiro antes, pois, como se sabe, os preços dos doces no cinema são absurdos, e depois nos sentamos nas cadeiras da fileira do centro. Apenas seis pessoas estão na plateia, contando nós dois. As luzes se apagam, e o clima de desejo sexual reprimido que passa por nós como uma leve corrente elétrica é quase tangível, assim como o cheiro de cigarros úmidos e suco de frutas, e o frio, e a vaga sensação de infestação. O primeiro filme é Um cão andaluz. Na assustadora sequência envolvendo a incisão em um olho e a decomposição de um jumento em cima do piano, Alice se inclina para a frente e tapa os olhos com as mãos e eu, muito piegas, coloco o braço sobre o encosto de sua cadeira, como que a protegendo da percepção grotesca de Dalí e Buñuel do funcionamento do subconsciente.
Então, as luzes se acendem e há um breve intervalo no qual comemos um saco enorme de amendoins cobertos de chocolate, tomamos Lilt e discutimos sobre o surrealismo e sua relação com o inconsciente. Alice não é grande fã da coisa.