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— Isso não mexe comigo. É muito feio e alienante. Não me comove nem me envolve emocionalmente. Só isso...

— Mas não é para se engajar ou se envolver emocionalmente, não de maneira convencional. Surrealismo é para ser estranho e enervante. Eu acho que mexe muito, só que as emoções, às vezes, são de angústia e nojo... — A ironia é que o que eu quero mesmo é que Alice se engaje e se envolva de uma maneira convencional, e que não sinta emoções como angústia e nojo.

Então, as luzes se apagam e as coisas melhoram quando começa O encouraçado Potemkin. Fico olhando de soslaio durante a famosa sequência nas escadarias de Odessa até ela me dar um sorriso, e, naquele momento, me inclino para lhe dar um beijo. E, graças a Deus, ela retribui por bastante tempo, para falar a verdade, e é o máximo. Há um leve contraste de sabores cítricos e leitosos, pois Alice já estava nas balas de goma e eu continuava nos amendoins com chocolate, e não posso mandar ver de verdade porque estou com um pedaço de amendoim grudado no molar e não quero que o amasso fique muito acalorado, para não acontecer um acidente. Afinal, não precisava ter me preocupado, pois ela logo se afasta e sussurra:

— Acho melhor assistirmos ao filme. Quero saber o que acontece com os marinheiros! — e voltamos a O encouraçado Potemkin.

Já está escuro quando saímos do cinema, e me sinto um pouco nauseado por conta de tantos doces e beijos, mas ela pega no meu braço e andamos pelo centro da cidade, conversando sobre Eisenstein com ares revolucionários.

— Ele é mesmo o pai da técnica moderna de narrativa cinematográfica — comento, e, quando, enfim, não tenho mais nenhum tipo de baboseira monótona para tagarelar, pergunto: — Café e biscoitos de aveia? Ou vamos ao pub? Ou para minha casa? Ou para a sua?

— Melhor não. Eu tenho uns diálogos pra decorar.

— Posso tomar sua lição — sugiro, embora algo me diga que já estou forçando a barra.

— Na verdade, prefiro fazer isso sozinha — responde Alice, e percebo, consternado, que estamos voltando aos alojamentos e que esse é o fim do nosso encontro romântico por enquanto.

Então, na rotatória, pouco depois da estação de ônibus da National Express, vejo algo que me dá uma ideia.

— Vem comigo um segundo...

— Para quê?

— Tive uma ideia. Vai ser divertido, prometo. — Muito sutilmente, aperto mais firmemente seu braço, para que ela não fuja, entramos na névoa de diesel cinzenta da estação de ônibus e chegamos à cabine de fotos instantâneas.

— O que estamos fazendo?

— Pensei em tirarmos uma foto — explico, procurando alguns trocados no bolso.

— De nós dois?

— É.

— Com que finalidade? — questiona ela, afastando-se um pouco. Aperto mais o braço de Alice.

— Só um souvenir — respondo, mas aquela não é a palavra certa. Souvenir, substantivo, do verbo francês souvenir, lembrar-se. — Vamos lá... Vai ser engraçado!

— Não mesmo! — responde ela, e me pergunto como colocar Alice ali dentro sem um lenço com clorofórmio.

— Ah, vamos...

— Não!

— Por que não?

— Porque eu estou horrível! — responde, quando é óbvio que o que ela quer mesmo dizer é Você está horrível....

— Que bobagem! Você está ótima... Vamos... Vai ser divertido! — digo, puxando-a pela mão, na estação. Vai ser divertido, vai ser divertido, vai ser divertido... Puxo as cortinas laranja de náilon impregnadas de diesel e nicotina e me espremo dentro da cabine e começamos a ajustar a altura do banco e decidir como vamos nos sentar. Alice acaba se empoleirando no meu joelho, mas depois precisa se levantar para que eu tire um monte de chaves e trocados dos bolsos antes de ela se aninhar outra vez no meu colo, agora com as pernas em cima das minhas e enlaçando meu pescoço com os braços. Enfim, ela está cooperando, e parece que isso pode mesmo acabar sendo divertido afinal; então, me inclino para a frente e coloco as moedas na fenda.

A câmera dispara o primeiro flash quando estou tirando uma mecha de cabelo solto da frente dos olhos.

Para a segunda foto, tiro os óculos e chupo minhas bochechas, fazendo biquinho, como um modelo masculino, porque parece engraçado.

Para a terceira foto, tento uma risada leve e relaxada, com a cabeça pendendo para trás e a boca aberta.

E, na foto número quatro, beijo Alice na bochecha.

Parece que se passam várias horas enquanto esperamos as fotos saírem da máquina. Ficamos na estação de ônibus em silêncio, inalando a fumaça do óleo diesel e escutando o sistema de alto-falantes. O ônibus das 17h45 para Durham está prestes a sair.

— Você conhece Durham? — perguntei.

— Não — respondeu Alice. — E você?

— Não. Mas gostaria. Parece que tem uma catedral muito bonita. — O ônibus passa com um ruído surdo, o escapamento arrotando. Penso em me jogar debaixo das rodas. Finalmente, com um zumbido e um clique, a máquina cospe as fotos, grudentas com o fluido de revelação e cheirando a amônia.

Algumas tribos primitivas acreditavam que ser fotografado era ter um pedaço da alma roubado, e, vendo a tira de fotos, é difícil não pensar que talvez tivessem razão. Na primeira, a minha mão e o meu cabelo estão cobrindo a maior parte do meu rosto, e a única coisa que dá para ver com clareza é a acne em volta dos cantos da minha boca e uma língua gorda e salpicada, pendendo para fora de modo obsceno, como se eu tivesse acabado de levar um soco. A foto número dois, a foto engraçada de modelo masculino, talvez seja a coisa mais grotesca e não engraçada já vista, com o efeito reforçado por um dos olhos de Alice se revirando, só um. A foto número três, com o título de risada, está horrível, clara e iluminada demais, destacando minhas fossas nasais, com um emaranhado de pelos que parecem chegar ao centro do meu crânio, e, logo abaixo, estão visíveis as nervuras cor-de-rosa do meu palato, as obturações e até a epiglote. Por fim, na foto número quatro, estou beijando Alice com a boca rachada e contraída enquanto ela se retrai, de olhos bem fechados.

Essa é para levar na carteira.

— Minha nossa! — comento.

— Ficaram ótimas — responde Alice, num tom monótono.

— Quais você vai querer?

— Ah, acho que estou bem. Pode ficar com elas, como um souvenir — e lá está a palavra de novo — souvenir, substantivo, do verbo em francês souvenir, lembrar-se. — Desculpe, Bri, eu preciso correr. — E é o que ela faz. Sai correndo.

Naquela mesma noite, estou em casa dando os últimos retoques no poema e olhando para a tira de fotografias presas com fita adesiva na parede ao lado da mesa — eu beijando Alice e ela se contraindo —, quando cai a ficha que nosso dia de passeio e diversão foi apenas um sucesso parcial. Claro que eu devia deixar isso de lado, mas me preocupo com a possibilidade de não conseguir dormir e não falar com ela mais uma vez. Por isso, visto meu casaco e vou ao bar dos estudantes, na esperança de esbarrar acidentalmente com ela depois dos ensaios.

Claro que ela não estava lá. Quando chego, a única pessoa que reconheço é Rebecca Epstein, cercada pela sua panelinha de malditosativistaszangados. Ela parece bem feliz em me ver e faz com que os companheiros redistribuam o espaço no banco para que eu me esprema ao seu lado. A mesa está coberta de copos vazios; Rebecca ficou alternando entre cerveja e uísque a noite toda, e parece bem embriagada.

— Você já assistiu a O encouraçado Potemkin? — pergunto, prestando atenção para ver se Alice chega.