— Deixe eu ficar sozinha, Brian, por favor — pede, e me sinto tentado a obedecer, pois seria mais fácil.
— …Mãe, não precisa ficar...
— Deixe eu ficar sozinha. Vá embora...
E se eu fingisse que não ouvi nada daquilo? A porta da sala ainda estava aberta. Eu poderia sair, dar mais ou menos uma hora e voltar, quando ela estivesse mais calma. Afinal, foi o que ela me mandou fazer. É isso que ela quer, não é?
— Por favor, mãe, por favor, não chore. Odeio quando você... — mas não consigo terminar a frase, pois percebo que também estou chorando. Vou até ela e a envolvo no abraço mais apertado que consigo.
35
PERGUNTA: Pedras erguidas num círculo em Lindholm Hoje, perto de Alborg, na Dinamarca, sugerem que o lugar era utilizado para que tipo de ritual antigo?
RESPOSTA: Enterro viking.
Encontro Tone às 14h15 no Black Prince, no lado que dá para o mar. O lugar está vazio, a não ser por um casal de coroas tuberculosos segurando com carinho suas canecas já nos últimos goles de cerveja quente enquanto leem exemplares amassados do The Sun, e, mesmo assim, levo um momento para avistar Tone, pois, automaticamente, procuro um jeans azul-claro, não um terno preto de um botão, meias brancas e os sapatos cinza-claro que ele estava usando.
— Puta merda, Tone! O que aconteceu com o seu cabelo? — O visual viking se foi, substituído por um corte curto nos lados e atrás, a parte de cima repartida, com um certo exagero, para o lado esquerdo. Tone, de terno, com o cabelo repartido...
— Cortei, só isso. — Estico o braço para desfazer o penteado, mas ele bateu na minha mão com um golpe de caratê, de uma maneira não muito brincalhona.
Quero manter o clima leve, então pergunto: — Você está usando gel?
— Um pouquinho. E daí? — retruca ele, tomando um gole da pequena caneca de cerveja à sua frente. Acho que nunca vi Tone segurando uma caneca pequena de cerveja, e isso confunde a escala natural das coisas, fazendo-o parecer um tipo de gigante.
— Quer outro drinque? — pergunto.
— Estou bem...
— Outra caneca pequena?
— Não posso...
— Vamos lá, seu frangote... — brinco.
— Não posso. Tenho que voltar ao trabalho.
— Mas você deve ter tempo para uma...
— Eu não quero outra caneca, OK? — rosna ele. Levanto e pego uma caneca grande para mim.
— Então, como vai o trabalho?
— Bem. Estou na frente da loja agora, por isso o... — ele dá um puxãozinho na lapela do terno, meio se justificando.
— Que departamento?
— Sistemas de som.
— Genial!
— É, bom... Dá para o gasto. E tem comissão... Então...
— Spencer me contou sobre você ter entrado para os Territoriais.
— Contou? E vocês deram boas risadas com isso, né?
— Não, claro que não...
— Imagino que você não aprove.
— E eu disse isso? Sou unilateralista. Acho que os gastos com defesa deviam mesmo ser reduzidos e uma parte investida em serviços sociais, mas, ainda assim, entendo a necessidade de algum tipo de... — mas Tone está olhando para o relógio; não parece muito interessado. — Então, você já viu o Spencer?
— Claro que já vi o Spencer — retruca ele, hostil, e me conformo com o fato de que, pelo menos hoje, será impossível dizer qualquer coisa que não irrite alguma pessoa.
— E como ele está?
— Bom, considerando que ele atravessou o para-brisa de um Escort, até que está muito bem.
— O que aconteceu, Tone?
— Não sei exatamente. Estávamos no pub na sexta, como de costume, e, quando fechou, ele queria ir para Londres, para uma boate ou algo assim pra continuar bebendo, e eu disse não, porque ia trabalhar no dia seguinte. Ele estava muito bêbado, mas foi assim mesmo, no carro do pai. Dois dias depois, a mãe dele me ligou dizendo que ele estava no hospital.
— Alguém mais ficou ferido?
— Não...
— Bom, graças a Deus...
— …só o nosso amigo Spencer — acrescenta Tone, com um sorriso de escárnio.
— Eu não quis dizer... Eu só quis dizer que... E ele está encrencado? Quer dizer, com a lei?
— Bom, ele estava acima do limite de velocidade, com uma carteira provisória. O carro não era dele e não tinha seguro... Então, sim, do ponto de vista legal, as coisas não parecem muito boas.
— E como ele está... se sentindo?
— Não sei, Brian, pergunte a ele, tá legal? Tenho que voltar ao trabalho — irritado, ele toma o resto da caneca, pega uma embalagem de balas de menta do bolso e joga uma na boca, sem me oferecer.
Saímos do pub e seguimos rumo ao píer. O vento traz a chuva do estuário, Tone cobre a camisa e a gravata com a lapela fina do paletó e continuamos andando na direção da High Street.
— Você vai passar a noite aqui? — pergunta, não se importando muito com a resposta.
— Não, infelizmente não posso — penso se deveria contar que estarei no Desafio Universitário no dia seguinte, mas resolvo deixar de lado. — Tenho orientação amanhã bem cedo, então preciso voltar ainda hoje. Mas volto na Páscoa, acho... Então... A gente se vê quando eu voltar?
— É, pode ser...
— Tone, eu fiz alguma coisa que irritou você?
Ele solta uma risada pelo nariz
— O que lhe deu essa impressão?
— Foi alguma coisa que o Spencer disse? — sem resposta. — O que ele disse, Tone?
Tone respondeu sem olhar para mim:
— Spencer me contou sobre a visita que fez a você. Pelo que ele disse, não achei que você foi muito amigo, Bri. Na verdade, me pareceu que você se comportou meio como um babaca. Só isso...
— Por quê? O que ele disse?
— Deixa pra lá...
— Eu não podia deixar ele lá, Tone, era contra o regulamento...
— Ah, bom... Se era contra o regulamento, Bri...
— Foi ele que começou a briga, Tone...
— Olha, Bri, não quero saber. Isso é entre você e o Spencer.
— Então, suponho que também seja minha culpa que ele tenha decidido encher a cara e enfiar o carro numa árvore?
— Eu não disse isso. Vê se consegue dar um jeito nas coisas, Brian, tá legal? — Tone aperta o passo, a cabeça abaixada contra a chuva, por um segundo, e se vira um pouco. — E tente não ser muito idiota no processo, OK? — Ele vira as costas e volta a se apressar para o trabalho, e fico me perguntando se algum dia verei Tone outra vez.
36
PERGUNTA: Isolado pela primeira vez por F. W. A. Sertuner, em 1806, qual é o nome popular do narcótico analgésico derivado da semente verde da papaver somniferum?
RESPOSTA: Morfina.
Manhã de maio de 1979, três dias depois do funeral do meu pai. Estou deitado no sofá com as cortinas fechadas, assistindo à programação de sábado de manhã, vestindo o uniforme da escola. Claro que não preciso estar com o uniforme da escola, tecnicamente, mas tendo a usá-lo o ano todo, pois, assim, é mais fácil e, de qualquer modo, não sei mais o que usar. Minha concessão para os fins de semana é não usar a gravata.
Os parentes já foram todos embora. Agora, ficamos só eu e minha mãe. Minha mãe não está bem, adquiriu o hábito de dormir até tarde, depois andar pela casa de camisola, deixando um rastro de canecas sujas e bitucas de cigarro, ou de cochilar toda encolhida no sofá a tarde inteira, até anoitecer. A casa toda está com um aspecto quente, cinzento e doentio, mas nenhum de nós consegue achar a energia ou motivação para abrir as cortinas e as janelas, esvaziar os cinzeiros, desligar a televisão, lavar a louça ou cozinhar algo que não seja espaguete. A geladeira ainda está abarrotada de sobras de bolo, salsichas embaladas e garrafas de Coca-cola sem gás, as sobras do velório. Estou comendo salgadinhos de queijo e cebola de café da manhã. Essa é, com certeza, a pior fase.