— Tem certeza de que pode pagar a passagem de trem e tudo o mais?
— Brian, não se preocupe com isso...
— O ingresso vai estar na porta, no seu nome...
— Ah, e Brian? Tem mais uma coisa... — começam os bipes no telefone, e, mesmo sentindo o peso dos trocados no bolso, percebo que já disse tudo o que tinha a dizer.
— Preciso desligar, mãe. Acabou o dinheiro...
— Brian, preciso perguntar outra coisa...
— Então, fale depressa...
— O Des pode ir também? — e a linha fica muda.
Fico um tempo na cabine, segurando o telefone. O fato é que sempre esperei que meu pai fosse estar lá. Não literalmente, óbvio, pois ele já morreu e tudo o mais, mas, na minha cabeça, eu via meu pai sentado na plateia, ao lado da minha mãe, sorrindo, aplaudindo, os polegares para cima, e minha mãe também deve ter imaginado isso, caso contrário não estaria tão nervosa em me fazer essa pergunta. E, naquele momento, não era o meu pai, mas Des, um cara chamado Des, que eu, na verdade, nem conheço, nem sei se gosto, e...
Pego os trocados do bolso, disco o número e minha mãe atende quase imediatamente.
— Mãe?
— Ah, sim, Brian, eu só ia perguntar...
— Eu ouvi, mãe. É claro que você pode levar o Des.
— Ah. OK!
— Vou arranjar o ingresso amanhã.
— OK, então, Brian. Se você tem certeza...
— Tenho certeza.
— Então, tchau.
— Tchau.
E desligo.
Continuo um pouco mais na cabine telefônica, pensando, bem, é cedo demais para dizer, mas parece que a política de Sabedoria, Bondade e Coragem funcionou muito bem até o momento. Acho que posso até ter feito uma coisa boa, para variar. E, mesmo tendo de ir para casa, escolher o que vestir na gravação, ter uma boa noite de sono e tudo o mais, decido ir ver Alice, porque é Dia dos Namorados, Dia de São Valentim, e, àquela altura, ela já deve ter lido o meu poema.
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PERGUNTA: Adam Heyer, Frank Gusenberg, Pete Gusenberg, John May, Al Weinshank e James Clark estavam entre as vítimas de que evento sangrento ocorrido em Chicago em fevereiro de 1929?
RESPOSTA: O Massacre do Dia de São Valentim.
Escute, Alice, eu andei pensando sobre nós, e, bem, tem um grande poema do poeta metafísico John Donne, Três vezes louco, que é assim: ‗Sou duas vezes louco, eu sei,/ Por amar, e por dizê-lo/ em plangente poesia.‘, e acho que, bem, eu tenho me sentindo um pouco assim. O que estou tentando dizer é que andei forçando um pouco a barra, como quando praticamente arrastei você a chutes e gritos para a cabine de fotos, e a poesia ruim no cartão do Dia dos Namorados e tudo o mais. E sei como sua independência é importante pra você, e, por mim, tudo bem, de verdade. Estou apaixonado por você, claro, muito apaixonado, mas isso não é importante, não precisa se interpor entre nós, porque, no fim das contas, acho que nos damos muito bem, que somos bons amigos, almas gêmeas, na verdade. Sem dúvida, eu preferia passar um tempo com você a passar com qualquer outra pessoa no mundo, de verdade, mesmo sabendo que posso ser um completo idiota às vezes. Na maior parte do tempo, aliás, mas não sou completamente estúpido. Sei que você não me ama agora, mas pode amar, não pode. Um dia? Quer dizer... Você pode ir se apaixonando? É possível, acontece, e eu tenho paciência, muita, muita paciência, e não me importo de esperar. Então, o que estou tentando dizer é: vamos esperar para ver. Só esperar e ver no que dá. Não vamos forçar as coisas, vamos só continuar a passar um tempo juntos e nos divertir. E esperar. E ver. OK?
É mais ou menos isso que vou falar para Alice quando a encontrar. Não sei se ela vai deixar passar a citação do John Donne... Estou preocupado que possa soar um pouquinho pretensioso, mas vou ver o que acontece na hora. Vou dizer todas essas coisas, nada mais, e ver como ela reage, mas sem entrar numa discussão grande e pesada. E, então, vou vestir o casaco, ir para casa e dormir umas boas oito horas de sono. E, definitivamente, não vou tentar beijá-la. Mesmo que ela me peça para ficar e fazer amor, ou seja lá o que for, vou dizer não, porque o Desafio é na manhã seguinte. E nós dois temos que estar bem-dispostos. Como lutadores de boxe — nada de sexo antes da luta.
Estou em frente ao quarto dela. Bato na porta.
Sem resposta.
Bato outra vez. Sabedoria, Bondade e Coragem. Sabedoria, Bondade e Coragem...
— Quem é?
— É o Brian.
— Brian! Já é quase meia-noite!
— Eu sei... Desculpe... Eu só queria dizer oi!
Escuto Alice sair da cama, o farfalhar de roupas sendo vestidas, e ela espia pelo vão da porta, com a camiseta do Snoopy e uma calcinha preta.
— Eu estou dormindo, Bri... — diz, esfregando os olhos.
— É mesmo? Oh, meu Deus! Desculpe... É que tive um dia cheio e queria conversar com alguém sobre isso.
— Não dá pra esperar até...
— Com alguém não. Com você.
Ela morde o lábio e passa a mão na camiseta.
— Ah, entre, então — e abre a porta. Entro e me sento na beira da cama desarrumada, quente ao toque na parte em que ela estava dormindo.
— Então... Como foi o Dia dos Namorados?
— Ah, bem, bem...
— Ganhou alguma coisa especial? — pergunto, incisivo. — Pelo correio, hoje de manhã? Ganhou alguma coisa legal? — Queria que ela viesse se sentar ao meu lado.
— Si-iiim, ganhei. Obrigada, Brian, é um poema realmente adorável.
Por que ela não vem e se senta ao meu lado?
— Você acha mesmo? Ufa! Porque eu estava um pouco envergonhado. É a primeira vez que alguém lê algo que escrevi, então...
— Não, eu achei adorável, realmente. Muito... franco. E... puro. Emocionalmente. Bem derivado do e.e. cummings, pensei, bem, não derivado, inspirado, é o que quero dizer. Aliás, acho que reconheci alguns versos... — Espera aí, ela estava me acusando de plágio? — … mas, de qualquer modo, foi mesmo adorável. Obrigada. Fiquei muito... comovida.
— Isso é... Supondo que tenha vindo de mim mesmo! — respondo, alegre. — Que poema? Eu não mandei poema nenhum! — estou tagarelando, eu sei, mas ela sorri, coça o cotovelo e faz uma tenda com a camiseta em cima dos joelhos nus. Tento manter um clima alegre, porém não consigo deixar de notar por cima do ombro dela um grande buquê de rosas vermelhas perfeitas pendendo para o lado, numa enorme panela de alumínio arranhada cheia de água, que ela furtou da cozinha comunitária. Claro que não há razão para ela não receber presente de Dia dos Namorados de outros homens. Eu seria um tolo de não saber que isso iria acontecer, não sou ingênuo, sendo tão linda e popular e sexualmente atraente e tudo o mais, mas aquele buquê é... vulgar. Tão vulgar que é difícil não falar sobre aquilo; por isso, me concentro no meu pequeno poema caseiro, sincero e feito à mão. Mas as rosas continuam lá, imponentes em cima da mesa, fazendo o quarto feder a perfume barato, aquele maldito buquê de malditas rosas vermelhas perfeitas...
— Lindas rosas! — comento.
— Ah, as rosas! — diz ela, virando a cabeça rápido e olhando assustada por cima do ombro, como se, de alguma maneira, elas tivessem brotado atrás dela, como se viessem de Birnam Wood, de Macbeth...
— Alguma ideia... de quem pode ter mandado? — pergunto, de modo casual.
— Não faço a menor ideia! — responde ela. Alguém esnobe e canalha, obviamente. O preço das rosas deve dar a bolsa mensal de um estudante, agora pendendo naquela panela de água. E claro que ela sabe quem mandou, pois de que serve ser tão generoso e se manter anônimo?